Um tesouro gótico que, ao recorrer a fantasia, malevolência e pusilanimidade, acaba falando sobre uma fobia da sociedade da época
Por Paola Orlovas*
Morgiana (1972), dirigido pelo eslovaco Juraj Herz (1934–2018) é um longa de terror e fantasia que, ao se basear no livro “Jessie e Morgana”, do célebre autor russo Aleksandr Grin, conta a história de duas irmãs, Klara e Viktoria, ambas interpretadas pela atriz tcheca Iva Janžurová.
A trama começa com Klara herdando todo o patrimônio de seu pai, um homem endinheirado, que, ao falecer, optou por não ceder dinheiro a outra filha. A partir de então, Viktoria, uma mulher controladora e gananciosa, elabora um plano para envenenar a irmã e obter o patrimônio que pertencia ao seu pai.
Enquanto Klara é uma figura inocente, comportada, bondosa e até alheia, Viki representa o oposto, sendo controladora, manipuladora e invejosa. A bidimensionalidade das personagens, apesar de vazia, acaba funcionando dentro do enredo do filme, e representando um dos maiores medos das famílias do país na época: a instabilidade familiar.
É importante ter em mente que a Tchecoslováquia foi um país de existência curta — tendo sido criado em 1918 e dissolvido em 1992 — que sofreu com duas ocupações. Com repressão e sem costas para o refúgio, os tchecoslovacos recorriam a suas famílias, e pensar em uma rivalidade como a do filme é tocar em uma fobia real da época.
Para além da distorção de uma fuga importante para a sociedade, Morgiana é um filme único por ter se dado em um período ainda mais incerto, tanto dentro do cinema quanto para o povo. Em 1972, grandes nomes da Nová Vlna sofriam com a censura e estavam incapacitados de gravar filmes, e a nação tchecoslovaca ainda observava as consequências da Primavera de Praga, ocorrida apenas 4 anos antes.
Vale destacar também que o longa reflete as incertezas daquele tempo ao não buscar, em momento algum, nos contar em que período ele se passa. O foco do diretor seria outro: estabelecer o filme como um clássico gótico, ao demonstrar a atmosfera amedrontadora de casas de meritocratas, teias de aranha e vários espelhos. Conseguimos, no entanto, identificar elementos inspirados no séc XIX por meio de vestimentas, objetos e cenários.
O mundo melodramático das duas irmãs, a frustração, a culpa, as fantasias, e o contraste entre ambas, fazem com que o filme se torne um clássico para além do mundo gótico, sendo parada obrigatória para todos aqueles que gostariam de conhecer mais sobre o cinema tchecoslovaco.
*Paola Orlovas é a idealizadora da Revista Vertovina. Estuda Comunicação Social com habilitação em Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, onde faz Iniciação Científica e integra o Grupo de Pesquisa Comunicação, Cultura e Visualidades. Se interessa por estudos dentro dos campos da Imagem, da Estética e da História da Cultura, com foco em vanguardas artísticas do século XX, fotografia e União Soviética.
Referências:
● The past is a different country: Two Czechoslovak films adrift in time, para Reviews, Studies in Eastern European Cinema, 2ª edição, 2012, de David Sorfa;
● Juraj Herz, por Leonardo Bomfim, para o livro Nouvelle Vague Tcheca: o outro lado da Europa, de Gabriela Wondracek Linck e Leonardo Bomfim;
● Revisiting the Surreal Films of Juraj Herz, a Pioneer of Czech Horror, de Soham Gadre;
● Juraj Herz obituary: a one-man wave of Czechoslovak horror, de Kat Ellinger, para British Film Institute