After Hours: a jornada odisséica de Paul Hackett para voltar para a casa

A jóia escondida de Martin Scorsese que nos joga numa Manhattan kafkiana, onde a noite parece nunca ter fim.

Por Felipe Parlato*

O diretor Martin Scorsese já estava com a carreira consolidada quando, no final dos anos 1970, decidiu se debruçar sobre um novo projeto no qual depositava muita expectativa: A Última Tentação de Cristo. A ambição do cineasta também se refletiu no orçamento, que cresceu exponencialmente. Esse fator, somado às diversas manifestações e ameaças vindas por parte de grupos religiosos, culminou no cancelamento do longa por parte da produtora Paramount Pictures. Frustrado, Scorsese decidiu apostar em projetos menores.

Foi assim que nasceu After Hours, também como forma de canalizar a frustração do diretor com sua falha. No filme seguimos Paul Hackett (Griffin Dunne), que, após um ordinário dia de trabalho na grande Manhattan, conhece a misteriosa Marcy (Rosanna Arquette), que o convida para passar a noite em seu apartamento no SoHo, antigo distrito industrial de Nova York.

O que era para ser uma noite com uma moça atraente se transforma em uma jornada absurda pelo underground desse bairro tão distante da realidade do protagonista, onde o tempo parece não passar. Conforme a noite não se desenrola como o esperado, Paul busca apenas voltar para casa e, de forma semelhante à Ulisses na Odisséia, se frustra ao encontrar incontáveis desafios, desde a simples falta de dinheiro para o metrô até uma multidão enfurecida que o confunde com um criminoso em série.

Nas três vezes que o personagem visita uma lanchonete, o tempo decorrido parece pouquíssimo se comparado aos acontecimentos vistos em cena nesse meio tempo. Na primeira vez o relógio marca duas horas, na segunda quatro horas e, por fim, doze horas. A escuridão do lado de fora sugere uma passagem do tempo cíclica que condiz com o tom surreal dos acontecimentos, como uma espécie de pesadelo.

Mas a Odisseia é apenas uma das diversas analogias à mitologia grega presentes no filme. Diversas referências colocadas por Scorsese e pelo roteirista Joseph Minion sugerem que a passagem de Paul pelo Soho seria uma espécie de passagem pelo submundo.

Localizada ao sul de Manhattan, a região tem uma aparência muito mais sombria do que a região residencial onde reside o protagonista. Diversas caveiras são colocadas pelos cenários e figurino das personagens, e a lanchonete River sugere que as ruas seriam como o rio que, segundo a mitologia, leva as almas do mundo dos vivos ao submundo de Hades. O próprio barqueiro responsável por essa travessia, Caronte, pode ser reconhecido na figura do taxista, já que ambos apresentam uma fixação por dinheiro — o taxista, acostumado com o estresse da cidade grande, dificilmente perdoaria Paul após ter seu dinheiro sugado para fora da janela do carro.

Representação de Caronte por Gustave Doré.
Taxista desembarcando Paul em After Hours.

O tom geral do longa remete também às obras de Franz Kafka, sendo uma referência direta à parábola Before The Law. Nela, um homem é impedido de atravessar um portão sem razão aparente. No filme, Paul é impedido de entrar em um clube punk mas, ao contrário do texto de Kafka, onde o homem não se força a entrar, Hackett força seu caminho adentro sem enfrentar resistência.

Esses pequenos momentos de aparente respiro são sempre seguidos por mais uma sequência trágica como, no caso, punks tentando raspar o cabelo do protagonista. O final vem de forma abrupta, quase como se a noite fosse um delírio, de repente interrompido pela rotina de trabalho que inicia no dia seguinte.

Essas são apenas algumas das referências fantásticas que contribuem para tornar After Hours um dos longas mais únicos na filmografia de Scorsese. Talvez ofuscado pelas aclamadas obras anteriores e posteriores a ela, incluindo A Última Tentação de Cristo, que foi por fim produzida alguns anos depois, o filme permanece um ótimo exemplo da versatilidade do diretor. Afinal, nem só de gangues vive a cidade de Nova Iorque.

*Sobre o autor: Felipe Parlato gosta de muitas coisas, uma delas é o cinema. Estuda jornalismo na Cásper Líbero. Enquanto não descobre sua maior paixão, vai se dedicando um pouco a cada uma delas.

Referências:

Kafka on the Screen: Martin Scorsese’s “After Hours”

Scorsese’s Forgotten Gem — After Hours & The Art of Surreal Comedy

After Hours Analysis: Urban Wizard of Oz

‘After Hours’ in the Afterlife: The Case for Paul Hackett’s Hell

A Companion to Martin Scorsese — por Aaron Baker pg. 101