Por Davi Krasilchik
O cinema musical sempre flertou com uma libertação estilística bastante própria, flexibilizadora, muitas vezes, das regras de formalização de outros universos simbólicos propostos pelo audiovisual. Nesse viés, o gênero passou a permitir uma externalização bastante oralizada da parte das personagens — autorizadas a se apoiar na exposição de suas problemáticas através das letras de composições — , um staging mais ficcionalizado na forma como os ali inseridos se locomovem pelo espaço — haja visto as mirabolantes coreografias musicais — e, de modo geral, o rompimento com a verossimilhança.
Conforme o avanço do estilo apresentado por filmes como O Cantor de Jazz — longa imbuído de uma cena cantante em questão, eleito como ilustrador dos potenciais do cinema sonoro que se emancipava em 1927 — , e reverenciado em obras ainda mais icônicas como Cantando na Chuva (1952) — clássico que em sua linguagem própria busca exercitar usos exclusivos da câmera e se afastar do palco teatral — , todavia, novas cristalizações passaram a se formalizar, limitando a assinatura dessa esfera cinematográfica.
As canções que alimentam passagens centrais dos dramas ali desenvolvidos tornaram-se frequentes, e a saturação de se articular um rompimento entre a força imaginária das ferramentas musicais e as brutalidades das situações expostas se converteu em uma nova rédea de criação. No processo, esse esvaziamento criativo atendeu à priorização da estética, minimizando o uso do Musical como outra possível alternativa para a investigação de facetas humanas. A espetacularização tomou conta desse processo, o que inclusive reaproximou excessivamente esse segmento da Sétima Arte dos palcos teatrais, não justificando o uso da câmera de Cinema para estruturar essas narrativas.
Esse certo grau de estagnação proporcionou diversas adaptações que se provaram dissociadas das capacidades da sala escura, que naufragaram ao emular cosmos que pouco se encaixaram nas grandes telas. Exemplos disso estão na cinematografia de Tom Hooper, diretor que transportou o marcante romance de Victor Hugo, Os Miseráveis (1862), do Teatro para as últimas apenas em um função de uma amplificação orçamentária que em pouco se afastou da composição cenográfica e misé-en-scene autorizada pelo primeiro, em nada acrescentando à jornada de figuras conhecidas como Jean Valjean.
Tal sina é o que comprova, entre outros exemplos, o estrondoso sucesso da versão filmada do musical Hamilton — sucesso da Broadway lançado por Lin Manuel Miranda em 2015 que reconfigura a trajetória de alguns dos “pais fundadores” dos Estados Unidos — , que chegou ao Disney+ em 2020 para mostrar como determinados experimentos só funcionam nos palcos convencionais. Por outro lado, tal fator ainda reitera a artificialidade de outros projetos do mesmo autor, que demonstrou uma maior afinidade com os últimos por não conseguir justificar o uso da cinematografia como forma de composição de seu Tick, Tick… Boom! (2021), produção original Netflix que emprega ambiciosos travellings e demais movimentos sofisticados apenas para reproduzir os códigos de criação artísticos teatrais.
Dessa forma, era de se esperar que algumas respostas fossem articuladas perante a redução dos musicais no cinema, proporcionada pela mobilização de autores específicos que visam resgatar a força inerente ao gênero, presente desde as suas origens porém diluída através dos tempos. Nesse sentido, merece destaque o recente Annette, longa lançado em 2021 que resgata essa tradição imagética, flertando com a liberdade estilística oferecida pelo gênero, mas que o faz justamente por visar um auto-reconhecimento de suas limitações com o intuito de voltá-las ao conflito interno da sua dupla de protagonistas. Dirigido por Leos Carax, é estonteante a maneira como o filme inova justamente por resgatar o clássico, arquitetando corajosamente uma grandiosa epopeia musical que em momento algum renega o poder que a imagem consegue exercer sobre o nosso imaginário.
Profundamente apaixonados, o comediante Henry (Adam Driver) e a atriz Ann (Marion Cotillard) apreciam o florescer de seu casamento enquanto decolam em suas carreiras individuais. Após o envolvimento do humorista em uma série de controvérsias e o nascimento de sua misteriosa filha, entretanto, o relacionamento dos dois passa a se tornar bastante turbulento. Decifrando pouco a pouco as verdadeiras camadas escondidas através da reluzente imagem de casal perfeito, essa é apenas uma fração da alucinante trama que a produção apresenta, imersa em uma vibrante identidade que não cessa nunca em se reinventar.
Através do uso de uma assinatura extremamente estilizada, contagia a forma como a direção desvia a libertação da forma para contrapor aqueles que conduz com a necessidade de ambientação em um mundo espetacularizado, escolha que acompanha não apenas a própria trajetória das personagens como também estabelece uma dimensão metalinguística. Por meio da literal externalização de sentimentos perpetuada pelas canções, entre outras ferramentas, Carax atravessa a quarta parede e alerta para a dependência que depositamos nessas narrativas, cabendo a nós, como espectadores, a manutenção de ídolos em uma dimensão supranatural.
Essa dicotomia entre público e estrela para o além da tela fica muito bem estabelecida na concepção dos shows de Henry, por exemplo. Diferentemente de sua segura esposa — que em suas performances até converte alguns objetos cênicos em fantasia, mas jamais se projeta para fora do palco — , trava embates ao dividir alguns enquadramentos com a sua plateia, conforme os longos travellings em que a plateia obstruí a imagem até o protagonista. Está determinada, assim, a urgente necessidade que a personagem possui em relação à aprovação daquela mesma. É tamanha a ânsia por conexão que, nos planos em que fogem a sua presença, flertam até mesmo com aqueles que escapam à diegese ali apresentada.
Não suficiente, esse desejo doentio pela manutenção do status também é aplicado ao conflito entre essência e simulacro. Aqui isso se dá justamente pelas luzes e pelas sequências mais ambiciosas que resgatam a atmosfera teatral — e ao mesmo tempo “fragilizam” as construções cinematográficas, munindo-as de exageros visuais — , artifícios que sugerem a dificuldade de se desvencilhar perfis genuínos das meras projeções moldadas pela percepção alheia.
Até mesmo as cenas mais simples — vide a sequência final ou a de uma simples caminhada, por exemplo — quando munidas de canções espalhafatosas, expressam uma dualidade muito atrativa, como se o viver comum se perdesse na fusão entre o público e o privado. Somos, assim como aqueles que acompanhamos, meros personagens? Estaríamos fadados a tentar cultivar, manipulados, falsos indícios de propósito para afastar a ideia de nossa inutilidade? Questionamentos como esses ficam muito bem expressos na trajetória da figura de Driver, na materialização de Annette como boneco de madeira — uma marionete, controlada por seus pais, incapaz de determinar a sua própria identidade — e na superficialização geral do projeto, que evoca grandes e fantasiosos cenários para unir a forma fílmica clássica à moderna.
Esse conjunto acaba transpirando magia e falsidade notáveis, para justamente dificultar a definição daqueles diante de nossos olhos, presos entre aqueles que desejam ser e aqueles que a aprovação os força a se tornar. Mais do que isso, o uso constante de novos recursos — embora se esgote em certo ponto — condiz com o papel das ferramentas online das quais, em alguns momentos, o filme se utiliza, principalmente no que tange à constante sujeição de nós mesmos a milhares de estímulos no contexto da pós-modernidade. Nada basta, tudo muda imediatamente, anestesiando o público que mal consegue acompanhar essa obsolescência. Estamos sempre nos transformando e em adaptação a novos princípios, como sequer ter conhecimento acerca de nossa essência?
Ainda nesse viés, tudo se torna ainda mais profundo quando considerada a ligação pessoal do diretor com o projeto, que tem em sua vida um próprio fantasma pessoal para lembrá-lo constantemente da sua falecida esposa. É assim que percebemos como essa espetacularização desconstrói a própria natureza, subvertendo a finitude associada a ela e criando espectros sustentados por seus legados.
Como um todo, Annette reinventa o cinema musical por construir sua identidade justamente através da artificialização oferecida pelo mesmo. Em um mundo onde tudo é performado e opiniões alheias definem quem nós somos, tem lógica uma obra que utiliza dessa caricatura para discutir sobre o abismo existente, em alguns de nós, entre imagem e espírito. Mais do que isso, todavia, é uma bela obra sobre os papéis que atribuímos aos demais, por vezes íntimos e ligados àqueles que primordialmente somos, mas que acabam desumanizados e preparados para nos assombrar, destituídos da genuinidade que deveriam carregar na conexão entre diferentes seres.