Em Opening Night, as estruturas secretas das relações femininas são desveladas pela atuação de Gena Rowlands, que usa de seu corpo para encenar o balé dos desejos miméticos da personagem
Carolina Azevedo
Gena Rowlands, com seu olhar cativante e glamour delirante, é em Cassavetes a remanescência de uma imagem do passado. Em seu anacrônico visual de vedete da antiga Hollywood, a brilhante atriz representa, nos filmes que assina ao lado do marido, os papéis clássicos da era anterior – mãe impassível, femme fatale irreverente, mulher envelhecida – mas ela os revira, os interpreta a sua maneira e os traz à força para o presente.
Reafirmando de filme em filme suas diferentes visões do feminino, o cinema de Cassavetes foi também o de Gena Rowlands. De atriz da televisão americana – onde encarnava o papel de dona de casa com suas mechas loiras perfeitas e vestido modesto – Rowlands subverte a personagem a ela atribuída ao deparar-se com a liberdade de atuação que John Cassavetes a garantia. Em diversas entrevistas no decorrer dos últimos anos, a atriz conta como cada papel era como uma página branca angustiante e estimulante, que lhe permitia experimentar e emancipar suas personagens e a si mesma como atriz. Para ver o resultado do trabalho da dupla basta assistir aos filmes e sentir no corpo de Mabel (A Woman Under the Influence) a humanidade desmascarada de uma mulher atravessada por angústias bem como entusiasmo, ou, na imagem de Myrtle (Opening Night) estirada ao chão do palco, a atriz vencida pelo cansaço.
Nada disso seria possível se não fosse pelo amor do diretor por seus atores, algo que a própria atriz diz ser algo raro na indústria. Apesar de se expressar silenciosamente em toda sua filmografia, é em Opening Night que John Cassavetes exterioriza formal e literalmente seu amor pelo trabalho do ator, filmado a partir de situações de sua própria vida ao lado da esposa.
Opening Night como epítome do tratamento cassavetiano do feminino
No filme, Myrtle Gordon (Gena Rowlands) é uma grande atriz de teatro atormentada pela morte de uma fã, atropelada enquanto pedia um autógrafo, e por sua dificuldade de se conectar com a personagem que deve interpretar na peça The Second Woman. A personagem, Virginia – cujo nome coincide com o nome original de Rowlands – escrita por uma mulher muito mais velha que a própria atriz, sofre com o envelhecimento, questão que passa a aborrecer Myrtle para além do palco. Durante os vários ensaios para a estreia da peça, a atriz passa a ter cada vez mais dificuldade em encenar como Virginia, enquanto se afunda em bebida e se vê recusada pelos homens ao seu redor.
No livro organizado por Ray Carney, Cassavetes on Cassavetes, o diretor conta sobre o ponto de partida do filme:
“Opening Night deals with people’s reactions when they start getting old: how to win when you’re not as desirable as you were, when you don’t have as much confidence in yourself, in your capacities. When you have less energy, and when you’re conscious of that. This is the first idea in the film. The next idea is to show the life of an artist, of a creator. I think that I know a lot about the life of somebody who is creative. At this point different ideas come along that progressively take shape, and I start writing the script. I write a first draft, and then a second one, and so on. Then, once I’ve chosen the actors, they start telling me what they think: ‘I don’t like this.’ ‘I don’t like that.’ ‘I don’t want to be merely a functionary; I want to be a real person.’ They quickly catch onto the places where their character is boring or conventional because it is just following the plot. Conventional people are the ones who want to succeed, who always need to be understood and thought well of. Actors are people who don’t care about getting ahead or what you think of them. Their one goal is to communicate a precise thought in a way that can be clearly understood. It’s a very difficult job.”
A questão do envelhecimento e a dificuldade de adequação de uma grande estrela à nova ordem na indústria do entretenimento não eram questões novas para os estúdios americanos, tendo como memoráveis exemplos clássicos da antiga Hollywood como Sunset Boulevard (1950), What Ever Happened to Baby Jane (1962) e All About Eve (1950) – o último, um dos filmes preferidos do diretor. Mas aqui, não é a pena pela musa arruinada que toma conta do espectador, mas um sentimento mais humano, uma identificação pelo medo que o fantasma da jovem incide sobre a personagem de Rowlands e a reação corporal desta face à sua tentativa de se comunicar com os homens que a cercam até o último minuto, em que a obrigam a entrar em cena bêbada, sem condição alguma de interpretar.
O resultado vem, para além da atuação extraordinária e única de Rowlands – que usa de seu corpo para encenar o “balé dos desejos miméticos” da personagem – do cuidado que o diretor sempre teve com as mulheres que colocava em cena. Com o objetivo de explorar o tema do envelhecimento, Cassavetes metodicamente comparou as vidas de dezenas de mulheres de idades e vidas diferentes. Era parte do seu processo de escrita fazer sua pesquisa, conversando com mulheres, lendo revistas, assistindo a programas femininos e passando tardes com Gena e sua mãe, como conta em excerto do livro de Carney:
“I love spending the afternoon with these women! I never talk. I just sit and listen and smile. They tell me everything! They forget I’m a man! I might as well have a dress on. Then I also read for two years all the women’s pages. Everything is how to be younger. How to stay younger. What is the answer? What is the secret? So we made a film. I’m not afraid of putting in aging. I sit up and watch the morning shows. I was watching people patting people on the cheeks all morning. If I made a movie like that they’d kill me because they’d be so embarrassed. I would never choose that because it’s exploitative. That would be taking somebody and embarrassing them.”
O Devenir-femme de Cassavetes e Rowlands como motivo pictórico
Por isso, é natural classificar Opening Night como a grande obra de Cassavetes sobre e para as mulheres, como afirma Murielle Joudet em sua biografia de Gena Rowlands, On aurait dû dormir. Em Love Streams, Sarah é como a casa que abriga cada uma das personagens de Gena Rowlands nos filmes de Cassavetes, mas é em Opening Night que as estruturas secretas das relações dessas mulheres entre si e consigo mesmas são desveladas.
O filme é construído de tal forma que é como se não sentíssemos o diretor por trás das câmeras, mas a própria atriz, um olhar sutil e verdadeiro sobre como mulheres se veem e julgam mutuamente para, no final, perceber que é necessário viver entre mulheres. Myrtle se relaciona sobretudo com os homens ao seu redor (os personagens do diretor em Ben Gazzara, do produtor em Paul Stewart e do ex-amante e ator em Cassavetes) mas são suas interações entre Virginia, sua personagem, e o fantasma de Nancy, a garota morta no início do filme, ambas inexistentes, as mais marcantes tanto para a personagem quanto para o espectador.
A paixão de Cassavetes pelas mulheres, transmitida em sua capacidade quase ilimitada de se identificar e representá-las em sua complexidade sem transformá-las em retratos feios, vulgares e machistas, é o que torna sua obra tão verdadeira quanto poderia ser um filme. Rowlands é então o “motivo pictórico” ao qual ele retorna sucessivamente, buscando capturar sua essência a cada filme, um cinema obsessivo pelo amor, pelo casamento e pela mulher, reinventada a cada cena pelo espetáculo cansado da femininidade entregue pela atriz.
Bibliografia
LA BELLE ET LE CLOCHARD: entretien avec Murielle Joudet par Damien Bonelli <https://www.critikat.com/panorama/entretien/gena-rowlands-avec-murielle-joudet/>
CARNEY, Ray. Cassavetes on Cassavetes. 2001, Faber and Faber Limited. <http://www.thestickingplace.com/wp-content/uploads/2013/03/Cass-on-Cass.pdf>JOUDET, Murielle.”Gena Rowlands : on aurait dû dormir”, Capricci, 344 pages. Parution le 20 novembre 2020. <https://capricci.fr/wordpress/product/gena-rowlands/>