Identidade Visual Noventista como Forma de Resistência Juvenil

Uma carta da juventude dos anos 90, movimentos culturais como forma de afronta, rebeldia como forma de resistência

Por Pedro Vidal

Nos anos 90, o que a juventude americana mais queria saber de fazer era não dar a mínima. Andavam de skate, jogavam videogame, usavam uma quantidade preocupante de drogas e álcool, assistiam programas da MTV e, através dessas manifestações culturais, procuravam seu lugar no mundo. Com o surgimento da internet e de tecnologias mais sofisticadas, ficou muito mais fácil descobrir como fazer o que você quisesse. Apesar do D.I.Y. ter surgido em meados dos anos 50, é nos anos 90 que o movimento se solidifica. Se Marshall McLuhan havia teorizado uma aldeia global nos anos 60, aqui ela está mais consolidada do que nunca. Ou seja, os anos 90 marcam o surgimento de uma comunidade de subculturas juvenil.

Dentre os mais sensibilizados por temas de amadurecimento jovem, o fotógrafo Larry Clark é certamente um dos que mais abordou o tema na sua carreira. Notável por eternizar um recorte do submundo das subculturas adolescentes americanas, suas fotos contem sexo adolescente, abuso de drogas, negligência parental e violência. Suas imagens cruas e obscenas retratam os impulsos criativos e destrutivos da luxúria adolescente, levantando a tona os problemas sociais que surgem nos subúrbios de NY. Através de elementos da cultura pop, Clark dá voz a um segmento da sociedade que optou por se livrar das armadilhas e decepções do típico “Sonho Americano” em Tulsa (1971), Teenage Lust (1983) e The Perfect Childhood (1993).

Fotos em New Jersey e Tulsa, 1975 e 1968, respectivamente

Numa busca de gravar seu primeiro longa, Larry Clark conhece o jovem Harmony Korine andando de skate no Washington Square Park. O fotógrafo propõe ao jovem de apenas 22 anos para produzir um roteiro sobre a comunidade adolescente suburbana de NY e a crise de AIDS que assombrou a cidade nos anos 90. Então, em 1995, surge Kids, a obra suprema de Clark, numa tentativa de fazer o maior filme adolescente americano de todos os tempos, misturando Lord of the Flies com skateboards, óxido nitroso e hip-hop.

Harmony Korine possuía a percepção de mundanidade suburbana e decadência do estilo de vida americano moderno por estar inserido nesse mundo no auge dos seus 20 anos. Foi o principal responsável por ter garantido ao filme uma impressão cultural do que a juventude consumia e fazia nos anos 90. Através de elementos do frenesi midiático noventista, Korine mostrava a influência da indústria nas práticas estéticas e culturais da juventude da época. O constante consumo de música, as camisetas longas e os skateboards constroem uma identidade visual muito forte do público adolescente. O melhor exemplo disso é a escolha do baixista do Dinosaur Jr. para o levantamento de músicas da trilha sonora do filme. Portanto, junto com as preocupações sociais da juventude americana de Larry Clark, Kids se constrói com uma proposta ousada de retratar a forma que a adolescência enxergava e sentia o mundo.

Fotos de set e Justin Pierce e Harmony Korine à esquerda

Expondo imagens de sexo, uso de drogas e negligência parental, o filme utiliza de uma crueza quase documental com uma câmera na mão pra gravar uma representação extrema do hedonismo juvenil. Não existe nenhum cálculo moral estrondoso que guia o filme, apenas um distanciamento observacional quase poético desses jovens apenas vivendo suas vidas. Clark e Korine queriam escapar dos moralismos maneiristas hollywoodianos, cheios de filmes sobre adolescência que sequer buscavam atores com a idade certa pra encenar e finais felizes com mensagens batidas. Então, propor um filme que mostrasse com pura honestidade a forma que adolescentes lidam com suas angústias e erros foi uma afronta à sociedade americana. A resposta do conformismo americano foi denunciar o gênio simples do filme, sua falta de moralidade e sua promoção do espírito adolescente evasivo, um “pesadelo de depravação” segundo o senador Bob Dole. A controvérsia só fomentou mais ainda a resistência do épico sem classificação de Larry Clark, um tiro à queima roupa no “Sonho Americano” que foi o mais claro possível sem precisar ser um documentário.

Justin Pierce e Chloë Sevigny e outros atores não-profissionais de Kids

Depois do projeto juntos, Korine tinha popularidade o suficiente pra arrecadar uma produção para seu primeiro longa solo, é assim que nasce Gummo. O filme não possui nenhum arco narrativo definido com começo, meio e fim, e apresenta uma série de acontecimentos excêntricos — dois garotos que caçam gatos pra vender no mercado, duas garotas adolescentes descobrindo sua sexualidade — que são memoráveis por seu choque de realidade. Assim como Kids, o filme não possui atores profissionais, a grande maioria dos atores não tinha experiência de atuação prévia e dessa forma, segundo Korine, o filme garante uma unidade artística muito mais orgânica por mostrar jovens que realmente estão passando pelos problemas da adolescência.

A premissa do filme é uma cidadezinha do interior devastada por um tornado, Korine monta um paralelo com a devastação moral do estilo de vida americano. Em uma situação social deplorável, as crianças de Gummo procuram o que fazer de uma forma desapaixonante, quase godardiana, como se não estivessem sofrendo as consequências de um acidente devastador. A desolação da cidade diminui a supervisão dos pais, as crianças são pintadas como se não precisassem do vínculo paternal do passado e nem de uma supervisão estatal.

Jacob Reynolds, descrevido por Korine como uma criança com uma aparência única no mundo

Tanto Gummo quanto Kids procuram utilizar dos elementos imagéticos populares americanos para desenvolver as suas críticas à sociedade americana. De acordo com Korine: “Os Estados Unidos é uma questão de reciclagem, uma interpretação do pop. Eu quero que as pessoas vejam esses garotos usando camisetas do Bone Thugs-N-Harmony e chapéus do Metallica como uma identificação esquizofrênica com imagens populares. Se você parar pra pensar, é assim que as pessoas se relacionam hoje em dia, através de imagens.”

Não só as obras de Larry Clark e Harmony Korine tratam dessa questão da importância das identidades imagéticas nos anos 90. Fiorucci Made Me Hardcore é uma videoarte do artista Mark Leckey de 1999. A obra mistura fragmentos de vídeos de boates e clubes britânicos, repetidos e desacelerados, montando uma colagem de sons ambientes e cores alucinantes. Dessa forma, Leckey captura com precisão a essência de como é estar dentro de uma boate e a retrata como se o momento fosse o mais importante da sua vida. De acordo com o artista, o título do vídeo é o estabelecimento de algo tão banal, descartável e explorador como um fabricante de jeans (Fiorucci) pode ser tomado por um grupo de pessoas e transformado em algo sagrado e poderoso.

Portanto, a comunidade juvenil consolidou nos anos 90 movimentos culturais que clamam pelo seu lugar no mundo, que desejam romper com os padrões neoliberais impostos pela sociedade americana. Seja através da fotografia documental de Larry Clark, do cinema excêntrico de Harmony Korine, ou até mesmo na música, com movimentos musicais como o hip-hop e o grunge. Gritando no microfone com guitarras barulhentas ou fazendo filmes sem atores profissionais, as subculturas noventistas abriram portas para experimentações futuras no campo cultural humano.

Referências:

https://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/25649/1/the-secret-history-of-kids

http://www.harmony-korine.com/paper/int/hk/rascals.html

https://www.closeupfilmcentre.com/vertigo_magazine/volume-1-issue-8-summer-1998/hidden-treasure-harmony-korine-on-gummo/

https://doomrocket.com/uncultured-gummo/

http://www.harmony-korine.com/paper/main/filmography.html

https://www.mullenbooks.com/pages/books/164529/larry-clark/teenage-lust-an-autobiography?soldItem=true

https://www.theguardian.com/artanddesign/gallery/2014/jun/05/teenage-lust-larry-clarks-most-controversial-photography-in-pictures

https://www.janus-books.com/products/larry-clark-the-perfect-childhood

https://www.theguardian.com/music/musicblog/2009/aug/03/fiorucci-made-me-hardcore

https://pier24.org/portfolio/larry-clark-teenage-lust/

https://www.icp.org/browse/archive/constituents/larry-clark?all/all/all/all/0