O diretor, documentarista e jornalista foi figura polêmica, mas central no cinema soviético
Por Paola Orlovas, para a Revista Vertovina
Denis Arkadievitch Kaufman, mais conhecido por seu alter ego, Dziga Vertov — composto, respectivamente, pela palavra ucraniana para “roda que gira sem cessar” e pelo verbo russo vertet, que significa “girar” ou “rodar” — foi rosto do Kino-Pravda (Cine-verdade), movimento que fundou com o intuito de retratar a realidade diária da população soviética por meio do cinema.
Para a realização do Cine-Verdade, o diretor, comprometido com o ato de informar, criou o conceito de Kino-Glaz (Cine-olho), que recusava as imagens mecânicas e os simbolismos do cinema de seu contemporâneo, Sergei Eisenstein. Assim, advogou por filmes gravados sem interferências do observador e montagens que não fossem artificiais, ou seja, que alterassem o sentido das cenas gravadas.
Seu objetivo também era político: Vertov, que produziu mais de 15 filmes até a sua morte, buscava transformar seu espectador, ensinando-o a ver, para então mudar o mundo. Seu legado, no entanto, vai além deste objetivo específico, podendo ser enxergado até hoje, por meio das montagens, ensaios e colagens de artistas contemporâneos.
Trabalhando com frequência em grupo, ao lado de sua companheira, assistente de direção e montadora, Olga Toom, e do seu irmão e diretor de fotografia, Mikhail Vertov, o jornalista cria o “soviete de três”, no início da década de 1920. Mais tarde, outros cineastas se juntariam ao círculo incessante do diretor, como Zotov, Koudinov e Bouchkine, formando os kinoks (cine-olhos).
Uma meta importante que Vertov mantinha com seu grupo crescente de kinoks e colaboradores externos era criar um movimento nacional do que ele, amante de neologismos, chamava de “cinecorrespondentes”. Com papel similar aos correspondentes do Jornalismo, essas figuras seriam responsáveis pela documentação de acontecimentos, produzindo relatórios gravados em filme, que poderiam ser utilizados mais tarde em montagens.
O cineasta planejava criar um laboratório de criação coletiva quando foi interrompido pelo stalinismo e pela força que a pintura, adquiria como registro oficial do regime e da vida cotidiana após o início da década de trinta, Outros problemas também traziam contratempos para a utopia vertoviana de montar uma produtora de grande porte, como a dificuldade em treinar cineastas aptos e de manter o equipamento necessário.
Mas, o maior obstáculo de Vertov era si mesmo. O Kino-Pravda e os princípios do Kino-Glaz não eram simples, o que dificultava a réplica. Afinal, seu cinema era puro, mas de cunho utilitário e, em muitos aspectos, altamente proibitivo, por não deixar com que cenas pudessem ser encenadas ou refeitas, tendo a verdade como finalidade.
Verdade essa que o trouxe para seus filmes e documentários desde o ínicio. Inspirado por um discurso de Lenin feito em 1918, em que o líder nomeou o cinema como o principal meio de divulgar as mensagens da nova ordem social da União Soviética, o cine-explorador começa sua jornada, tornando-se redator e montador do primeiro cinejornal de Atualidades da URSS, KINONEDELIA (Cinema Semana).
Seu comprometimento com um cinema para além do entretenimento e simbolismo causou diversos debates dentro do cenário artístico da época. Suas polêmicas mobilizaram figuras como os membros da Frente Esquerda das Artes (LEF), que negavam a arte burguesa, mas não o cinema com fins culturais, e também seu “rival”, Sergei Eisenstein, com quem a competição se dava para definir o propósito e a existência do cinema como ferramenta política — mesmo que suas concepções de conceitos básicos, como montagem, arte, imagem e documento se chocassem.
No Brasil, seus filmes Um Homem com Uma Câmera (1929) e A Sexta Parte do Mundo (1926) foram exibidos em uma mostra organizada pela Cinemateca Brasileira em 1961, sete anos após a sua morte, causando poucas impressões.
Apesar de o autodenominado instrutor, guia de filmagem e cine-explorador ser pouco conhecido pelo Ocidente, em grande parte pela dificuldade da União Soviética de difundir suas produções, quando olhamos para além das recepções de platéias, sua prática obteve êxito. Seus princípios e longas foram cruciais para a formação de diversos cineastas, influenciando movimentos inteiros, como o Cinéma Vérité de Jean Rouch e Edgar Morin e o Cinema Direto norte-americano.
Para além dos movimentos, podemos pensar no coletivo formado pelos cineastas franceses Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, chamado Groupe Dziga Vertov, que utilizou o diretor como exemplo de cinema de intervenção e revolucionário, se opondo ao cinema dominante — travando uma luta parecida com os debates que o instrutor do início do século XX fazia com Eisenstein — e se desprendendo de idealismos vigentes.
O legado que Vertov deixou ao morrer, em 1954, é imenso. Foram muitos os seguidores dele em todos os cantos do planeta, dentre eles o historiador Viktor Listov, que, ao lado de Elizeta Svilova, viúva do cineasta, organizou um arquivo com cópias de textos, fotografias e diversos materiais. Foram também admiradores os filósofos Jacques Rancière, Gilles Deleuze e Jean Cometti, além de dezoito estudantes de uma Escola de Cinema da República Federativa Alemã (dentre eles Hartmut Bitomsky, Harun Farocki e HelgerMeins), que ganharam fama ao ser expulsos por renomear o centro Dsiga Wertow Akademie, em 1986.
Referências:
● A revolução permanente de Dziga Vertov, de François Albera, traduzido por Ana Paula Pacheco, UNICAMP
● Ele e eu — Dziga Vertov em apuros, de Eduardo Escorel, para a Revista Piauí
● Homem da Câmera de Filmar: o cinema ou uma história do cotidiano?, de José da Silva Ribeiro, para Revista Galáxia