O diretor irlandês esteve no Brasil para o Festival É Tudo Verdade, que contou com uma retrospectiva de sua obra
Felipe Parlato
Para Mark Cousins, nenhuma História do Cinema é grande demais para ser contada. É o que sugere mais uma vez o diretor, ao exibir um trecho de seu futuro filme como parte da última edição do É Tudo Verdade, festival de documentários que se encerrou no dia 14 de abril. Trata-se de uma epopeia de mais de 16 horas sobre uma parcela de filmes que, na visão do cineasta, não recebe a devida atenção: os documentários.
O novo projeto, que conta com dezenas de trechos de obras do mundo todo, buscará levar o espectador em uma jornada pelos quase 130 anos do cinema documental. Com pouco menos de 10 minutos, o trecho exibido inicia a reflexão sobre a natureza do formato a partir de um objeto inusitado: elefantes. As primeiras imagens são de um vídeo viral de 2021 em que um elefante, preso em um buraco, é resgatado por uma escavadeira e “agradece” o gesto, juntando sua tromba à máquina. O filme então corta para um documentário de Edwin Porter de 1903, em que um elefante é eletrocutado — “conseguiremos assistir?”, indaga o narrador. Por último, somos levados a Slon Tango (1990), de Chris Marker, que filma o animal se movimentando de forma similar a uma valsa. Para o diretor norte-irlandês, os três exemplos, ainda que filmados com diferentes tecnologias, carregam a essência do que é um documentário.
Cousins já conta com propostas semelhantes em trabalhos anteriores, com enfoques diversos: um panorama global em A História do Cinema: Uma Odisseia, de 2011; grandes diretoras em Women Make Film – As Mulheres Fazem Cinema, de 2018; e as diferentes maneiras como crianças são retratadas em Uma História de Crianças e Cinema, de 2013. A proposta, agora, é lançar os holofotes não para personalidades ou objetos, mas sim para uma forma específica de expressão cinematográfica cuja definição, para o diretor, vai além de um gênero. “Documentários não são apenas um universo, mas um multiverso que constitui metade de todos os filmes já feitos. Têm gêneros por si só: podem ser ensaísticos, retratos, musicais, de protesto…”, esclarece.
A projeção integrou uma masterclass, realizada na Cinemateca Brasileira no último dia 9 de abril, em conjunto a uma retrospectiva de filmes que celebra a carreira do diretor como um dos mais prolíficos documentaristas contemporâneos. Ao lado de Amir Labaki, presidente do festival, Cousins revisitou, com muito bom humor, diversas obras de sua carreira, que inclui filmes, livros e produções para a televisão. Além de comentar sobre seu processo criativo – que inclui trechos de roteiros manuscritos e remendados à mão, formando um enorme pergaminho –, o realizador abordou documentário como linguagem, instrumento político e produto comercial. Para ele, os limites de um documentarista devem ser éticos, não formais.
“Documentários são menos discutidos enquanto linguagem. O que temos que fazer é ‘arrastar a realidade para a linguagem’, e aqui me refiro à ideia de que a relação entre a câmera e as pessoas forma uma nova consciência. São também muito acessíveis, no sentido eu e muitos aqui ficamos encantados pelo mundo e como o vemos, e esse é o principal ponto de partida.”
Cousins exemplifica esse argumento citando uma viagem que fez ao Iraque, na qual cedeu a um grupo de crianças um punhado de câmeras para que filmassem o que quisessem. “Foi levemente irritante, porque naquele ponto eu já era um cineasta há mais de 20 anos e o que elas gravaram foi melhor do que tudo que eu já tinha feito”, conta rindo.
Sobre o impacto político dos documentários, o diretor — que codirigiu em 1993 o documentário Another Journey by Train, sobre jovens neonazis na Europa — alerta sobre os possíveis perigos de uma pretensa imparcialidade. “A voz do documentário costumava ser a voz masculina, geralmente de um homem branco. Obviamente eu sou um homem branco, mas muitos não transpareciam seus pontos de vista, se apresentavam como seres oniscientes. Não há seres oniscientes, somos todos parciais.”
Segundo ele, várias dessas obras supostamente imparciais não cederam a câmera àqueles cuja história estava sendo contada, causando um impacto negativo. “Mas há bons impactos. Isso que é fascinante sobre documentários: podem e mudam as coisas, seja para o bem ou para o mal.” Apesar disso, o cineasta discorda da ideia de que documentários devem ter um propósito político. “Alguns dos melhores documentários tem zero impacto além de nos mostrar a beleza de estar vivo”, lembra.
O documentarista também refuta uma suposta ausência de potencial comercial no formato.
“Nós, amantes de documentários, sabemos como são unicamente embriagantes, próximos aos contornos da realidade. Apaixonados pelo mundo real, mas, ao mesmo tempo, céticos em relação a ele. Em inglês temos essa expressão, tough love (“amor difícil”). Acho que documentários têm uma espécie de tough love sobre o mundo. Queremos que reflitam a magnificência da realidade ao nosso redor, mas que percorram as atrocidades ao nosso redor, também. Documentários podem não ter estrelas de cinema, carpetes vermelhos e garrafas de champagne, mas têm algo que nos impede de andar sonâmbulos pela vida, que abre nossos olhos para coisas que outros tipos de cinema não podem abrir.”
A Vertovina teve a oportunidade de fazer duas perguntas a Mark Cousins, que nos contou sobre sua relação com o cinema brasileiro e o papel do cinema no contato com outras culturas.
Gostaria de saber sobre sua relação com o cinema brasileiro. Qual foi o primeiro filme brasileiro que você assistiu? Tem alguma joia escondida, um favorito?
Bem, não sou um especialista, a maioria dos filmes brasileiros não são exibidos no Reino Unido. Acho que o primeiro filme brasileiro que vi provavelmente foi Dona Flor, que foi um grande sucesso, ou talvez Central do Brasil, do Walter Salles. Rapidamente assisti a Limite, do Mário Peixoto, que é fantástico; e sou meio obcecado pelos filmes do Alberto Cavalcanti, particularmente. Embora ele seja brasileiro, fez muitos de seus filmes na França e no Reino Unido. Voltou aqui nos anos 50 e fez filmes muito bons. Quanto aos documentários, eu adoro um filme chamado Santiago, do irmão do Walter Salles, João. Também adoro Cabra Marcado para Morrer, do Coutinho. O fato de Helena Solberg estar aqui, a única mulher do Cinema Novo, é incrível. O filme dela de 1966, Entrevista, é fantástico. Também gosto muito de Bacurau, do Kleber Mendonça Filho.
[Sobre o livro História do Cinema, publicado pela primeira vez em 2004] Mais do que sobre a história do cinema, seu livro me ensinou muito sobre história do século XX como um todo. Nesse sentido, você acha que um conhecimento básico sobre história e linguagem do cinema pode ajudar na formação do indivíduo?
Muitos de nós aprendemos através de imagens e o cinema é uma maneira brilhante de aprender sobre o mundo. Assim como aprendemos literatura nas escolas, temos que aprender cultura visual nas escolas. É crucial para a democracia, para a saúde mental, para todo tipo de coisa. Sobre essa questão da história do cinema não ser apenas sobre cinema, mas ser o mundo: acho muito importante, para você e para os brasileiros, assim como para mim, que sou irlandês, ter interesse em ir além nosso próprio país. Temos que estar interessados em outras partes da América do Sul, outras culturas. Caso contrário, quando uma atrocidade acontecer como na Ucrânia ou em Gaza, não vamos entender. Não veremos que essas pessoas são nossos irmãos e irmãs. Isso é democracia básica, uma grande questão de empatia e humanidade comum. Quando o Covid aconteceu, todos nós enfrentamos algo juntos, certamente podemos aprender que somos uma espécie. Acho que é por isso que o cinema é tão valioso, pode simplesmente nos levar, nos mostrar. O que esses políticos como Bolsonaro, Trump, Erdogan e Netanyahu dizem é mentira: não são um povo escolhido, não existe povo escolhido. Se tem um pouco de política na história do cinema, então é isso.