Esta é a terceira entrada do diário de produção do curta-metragem Quero-quero, dirigido por Mauricio Abbade. Leia os relatos anteriores do diretor aqui.
DIA 28/04
Nos últimos dias, estive no set do filme “Efeito Laranja” como montador. O curta-metragem, dirigido por Lucas Lyrio, é uma produção da Barra3, produtora paulista de filmes como “Eu faço loucuras por você” (2024), de direção de. Gabriela Queiroz).
É raro a presença do montador durante as gravações. Quem atua normalmente como representante da montagem é o continuísta. Se engana aqueles que acreditam que a preocupação do responsável pela continuidade ser a posição dos objetos ou atores entre um plano e outro. Para além disso, pensa-se no corte, questiona-se a decupagem da direção.
Acontece que filmamos o curta em super 18, com a ideia de que as intervenções de edição na pós-produção fossem mínimas. Por isso o montador na filmagem, por isso eu estava lá: montando um filme enquanto se filma.
Foi uma boa diária. Passei os últimos dias com muita coisa na cabeça; preocupado se as coisas irão dar certo. É bom pensar em outros filmes, é bom ver outras pessoas dirigindo.
DIA 29/04
Sonhei com o filme. Talvez o verdadeiro iconoclasta seja aquele que acredita em imagens que são apenas imagens.
DIA 30/04
Na última diária do “Efeito Laranja” fico com o sentimento de que a escolha da câmera afeta tudo que se filma e especialmente a maneira que se filma. Por ser película, as pessoas parecem estar em um estado de alerta diferente dos outros sets que participei, grandíssima maioria em digital. Não sei se por medo ou respeito, mas as pessoas sempre parecem fazer as coisas com mais calma, mais cuidado.
DIA 06/05
Uma semana depois de terminadas as gravações do curta-metragem de Lucas Lyrio e após todas as locações do meu filme estarem fechadas, fizemos uma visita técnica em Barretos, interior de São Paulo.
Visita técnica é uma visita de locação, especialmente com os cabeças de cada equipe do projeto, no qual debate-se a decupagem da direção, as intervenções da arte, a posição das luzes da fotografia e outras tantas coisas.
É legal de fazer porque esse é um dos momentos que o filme começa a tomar forma. Nessas visitas, ele parece começar a existir também fisicamente para os outros. É um momento de troca sempre muito bom e dessa vez não poderia ser diferente.
No final, comemos no Chico’s Lanches, podrão que fica na praça matriz, no centro da cidade.
DIA 08/05
Depois de finalizada a visita técnica e com menos de um mês para a filmagem, tenho tido cada dia mais dificuldade de mexer no projeto.
DIA 09/05
Para espairecer, fui à Cinemateca ver a remasterização de A Hora da Estrela, dirigido por Suzana Amaral.
Já tinha visto o filme no passado, em uma cópia ruim publicada em algum canal de YouTube. Dessa vez, pude ver em uma tela grande em uma remasterização de cores saturadas. Coisa linda. Fico feliz com as iniciativas de preservação. Um filme neorrealista pop: cheio de coca-cola.
DIA 10/05
Passei uma manhã escrevendo sobre os personagens.
DIA 12/05
Reescrevi quase todo o roteiro. Gosto mais dessa versão. Vamos ver quanto tempo dura esse sentimento.
DIA 15/05
As datas de gravação estão chegando e ainda não tínhamos elenco fechado. Por conta disso, fizemos uma pequena força tarefa e finalmente conseguimos fechá-lo. É estranha a sensação de decidir o que será filmado, bater o martelo. Mesmo que em felicidade e com convicções, cada nova decisão é sempre uma nova morte. O mundo parece ir se afunilando.
DIA 19/05
Faltando mais ou menos três semanas para a gente gravar, começo a dedicar grande parte do meu tempo na decupagem. Hoje, começo também a desenhar alguns dos planos e a esboçar um storyboard.
DIA 23/05
Hoje foi o primeiro dia de ensaios.
Durante a manhã, fizemos uma leitura de roteiro com todos conversando sobre o que cada um acha de cada cena, dos personagens e do filme. Já na parte da tarde, as horas foram preenchidas com exercícios de interpretação e também improvisação de cenas. Aos poucos as coisas vão tomando forma.
DIA 30/05
Ontem foi aniversário de uma amiga. Passei a noite com um turbilhão na minha cabeça. No final da festa, vomitei na calçada.
É engraçado isso: lembro de também ter vomitado na semana anterior a gravação dos meus outros curta-metragens.
Mesmo que escatológico, gosto de pensar que vomitar faz bem. Tira aquilo que precisa sair, te deixa tonto assim te dando um outro norte.
Nenhum filme se parece com o outro, além de só se filmar um filme uma única vez. No cinema, há uma dependência trágica com a realidade que gera a impossibilidade da sua refação. Isso porque a imagem fotográfica carrega consigo sua reprodução, mas não sua refeitura.
Angústia para todo lado.
DIA 02/06
Na véspera da filmagem, testei a câmera e as lentes com o Gui Carrara, diretor de fotografia – além de ter organizado minhas coisas, como decupagem, roteiro e anotações.
Também imprimi pequenas fotos do Gus Van Sant, em uma forma de santinho.
Revi o curta-metragem Um clássico, dois em casa, nenhum joga fora do Djalma Limongi Batista. O filme tem uma camêra meio esquisita, uns silêncios perturbadores e um céu paulista bonito. São coisas que não saíram da minha cabeça.
Sobre silêncios e Gus Van Sant, também revi o filme Elefante. É um filme surreal, com planos de vida e morte.
Dirigir parece te dar um chacoalhão, te levar para frente. Para mim sempre me parece transformador. É besta, prepotente, hostil, lógico que é. Mesmo com tantas questões, acho sempre muito divertido.
Espero que seja bom.
Mauricio Abbade é diretor, montador e assistente de direção. Formado em jornalismo e cinema, já dirigiu três curta-metragens: “Atravessaria a cidade toda de bicicleta só pra te ver dançar” (2023), “De curitiba, dá pra se ver o espaço sideral” (2023) e “Gengivites” (2024).
Sinopse do filme “Quero-quero”: No último ano do ensino médio, o que Ribeiro quer mais fazer é contar aquilo que ele não consegue. Assombrado pela terra vermelha e por pássaros que levam em seu nome a palavra “desejo”, o que resta para Ribeiro é colocar fogo em gaiolas de hamster ao lado de seu amigo.