Em um ato que seria típico de Ozu, Yoshida abandona uma história prestes a atingir seu clímax dramático – pois o que interessa é apenas acidente
Felipe Palmieri
As últimas palavras de Yasujiro Ozu a Yoshishige Yoshida (conhecido também por Kiju Yoshida) foram abstratas. E provavelmente perturbaram este por uma vida inteira. A frase é ressaltada incessantemente por Yoshida em seu livro dedicado a Ozu, publicado mais de trinta anos após a morte do mestre do cinema japonês: “Cinema é drama, não acidente”. Como uma insistente assombração, essa frase traça uma linha direta que liga ambos cineastas – uma relação plausível, mas não óbvia.
É difícil enxergar uma conexão entre eles, mesmo sob análise atenta, que vá além da nacionalidade. Porém, há em Yoshida, tal como em Ozu, uma obstinação semelhante pela repetição. Um ímpeto artesanal, manifesto de forma menos radical neste que naquele, cuja natureza é parecida: repetem-se pessoas, temas, situações, temporalidades. Por causa disso, Ozu é descrito por Yoshida como um fazedor de tofu, que repete sempre o mesmo prato simples com perfeição.
Yoshida pode então ser visto, sob tal ótica, como alguém que repete a feição de um yakisoba completo — não sob um julgamento qualitativo, mas quantitativo. Yoshida repete em complexidade, por vezes exagerada, enquanto Ozu personificava a parcimônia. Mas há uma relação mais profunda, essencial, ao trabalho de ambos: a contradição. Como descreve Daisuke Miyao em sua introdução ao livro de Yoshida:
“O que Yoshida sugere ao longo deste livro é que, ao contrário das afirmações do próprio diretor, Ozu fez filmes sobre ‘acidentes’ ou incidentes na vida cotidiana cheios de eventos não dramáticos, não sobre ‘drama’ ou histórias coerentes criadas artificialmente. Pensando seriamente sobre a relação entre filmes e comercialismo, Ozu utilizou o artifício do cinema, mas não o utilizou simplesmente para criar imagens lineares, coerentes, e histórias dramáticas. Em vez disso, ele tentou indicar a existência do mundo real cheio de acidentes – ou pequenas diferenças entre episódios por trás do artifício”
O tom assombroso das últimas palavras de Ozu reside nessa contradição essencial: por que ele diria algo contrário ao que sua arte apresenta? O próprio Yoshida não parece ter sido capaz de decifrar tal mistério:
“Em seu leito de morte, ele pareceu satisfeito em confessar que seus filmes não foram construídos a partir de acidentes, mas transformados em dramas apenas por serem contidos e estritamente organizados pelo motivo da repetição e da diferença. No entanto, a verdadeira intenção de suas últimas palavras para mim continua sendo um mistério. Ainda não sei o que ele quis dizer. Ozu-san tentou apresentar imagens que poderiam ter significados infinitos. Suas últimas palavras vagam sem rumo como uma miragem.”
Mas, sendo um existencial por natureza, Yoshida parece ter incorporado tal mistério em sua própria visão sobre o cinema. Mais influenciado por Sartre — seu objeto focal de estudos durante a graduação em literatura francesa — que por qualquer cineasta, a chave para a compreensão de sua obra é a visão sartriana de existência como imagem real do ser humano. Dessa forma, tanto sua abordagem precisa e formalista quanto seus interesses temáticos acabam mascarando aquilo que, como descrito pelo próprio, é a base de sua visão: uma lógica de auto-negação, nome do ensaio que descreve a perspectiva do cineasta sobre o fazer cinematográfico.
Se drama é intenção e acidente é o acaso, lê-se a auto-negação de Yoshida como uma vontade de entregar-se ao mundo por completo. No entanto, o forte interesse em interpretar o contexto político-geográfico no qual trabalhou oculta tal finalidade, pois o leva a ter sua obra frequentemente — senão sempre — analisada em conjunção com a de seus contemporâneos japoneses.
Foi destacado pela Cahiers apenas ao lado de Masumura e Hani. É mencionado na história da Nuberu Bagu constantemente ao lado de Oshima e Shinoda. É estudado esteticamente sempre à sombra de Antonioni – o único não-japonês frequentemente mencionado junto à Yoshida. É descrito como “o mais europeu” dos cineastas japoneses de seu tempo, mas também como aquele cujo trabalho é menos conhecido no ocidente, como afirma o pesquisador Alexander Jacoby.
Ainda assim, tem em Eros + Massacre, título de sua obra mais conhecida, uma obra que ganhou mais e mais relevância com o passar do tempo. Nome que também foi escolhido como título do importante livro sobre cinema japonês do autor David Desser, o filme de Yoshida é descrito por ele como um texto crucial da Nuberu Bagu, como um filme que sintetiza as perturbações ideológicas e políticas de sua geração. Talvez não seja o filme que mais se assemelhe aos seus contemporâneos no que diz respeito à abordagem estética e tonal, mas é uma obra que carrega em si um valor simbólico capaz de traduzir as angústias, anseios e arrependimentos de toda uma geração. Uma espécie de zeitgeist desses cineastas.
A forte tendência de Yoshida à repetição acaba por facilitar o trabalho de quem quer catalogar o cineasta com etiquetas prontas, principalmente através de três aspectos: os temas políticos, a abordagem estética e as protagonistas femininas. Ou melhor, a protagonista feminina. É impossível mencionar Yoshida sem sua maior colaboradora, uma das maiores estrelas do cinema japonês da década de 1960, a atriz Mariko Okada. Eles foram casados de 1964 ao fim da vida de Yoshida, em 2022. Akitsu Hot Springs, História Escrita com Água, A Mulher do Lago, Affair, Caso na Neve, Impasse, Farewell to the Summer Light, Eros + Massacre, Purgatório Heróico, Confissões Entre Atrizes – isso citando apenas alguns dos trabalhos que Okada atuou e Yoshida dirigiu. Por causa disso, o cineasta era, de acordo com David Desser – como Kenji Mizoguchi antes dele –, conhecido pela alcunha de feminisuto.
A política é outro lado da moeda. Talvez a característica principal para tentar-se entender o cinema japonês da década de 1960 como um movimento unificado, a juventude revolucionária e os conflitos derivados da difícil história política japonesa eram parte crucial de muitas obras do cineasta – de seu primeiro longa, Volúpia Perigosa em 1960, ao último, Women in the Mirror em 2002. No entanto, como é afirmado pelo mais conhecido cineasta japonês da geração – Nagisa Oshima – a ligação com Yoshida, calcada nesse ato de filmar estudantes revolucionários e tramas políticas, era apenas coincidência. Yoshida corrobora a fala ao declarar em entrevista que todas as supostas ligações entre ele e Oshima, como pessoas, são obra do acaso. Nunca houve um movimento coeso e intencional.
A política se alia à estética na derradeira etiqueta que é utilizada para descrever Kiju Yoshida: a fama de difícil. Jacoby atribui tal fama ao fato de que as tramas políticas do cineasta são frequentemente exigentes, por requererem um bom entendimento da história da sociedade japonesa para serem apreciadas por inteiro. A estética não facilita, como bem sintetiza Vince Warne em seu artigo introdutório sobre a obra do cineasta japonês:
“(…) o mais singular aspecto de seu estilo é seu olho pouco usual para composições, que se destacam mesmo dentre filmes de uma das gerações mais formalmente experimentais do cinema. Suas imagens são definidas pelo negativo: anti-harmonia, anti-simetria, anti-continuidade. Frequentemente, em seus planos cubistas, uma parede ou objeto cobrirá uma vasta porção da imagem, com os personagens sendo empurrados para a periferia do enquadramento. Atores são filmados do pescoço para cima com muito teto sobrando. Ou são mostrados em reflexos fragmentados, ou em planos extremamente abertos — diminuídos ao tamanho de formigas diante de uma paisagem escancarada ou um vazio escuro”.
Porém, os enquadramentos pouco usuais, apesar de afastarem seus filmes de um universo narrativo comum, desenvolvem seu próprio universo de apreciação. Como descreve Jacoby: “(…) a beleza sensual de seus enquadramentos é acessível a qualquer espectador sensível”. É também essa característica que provoca as comparações com Antonioni, mas há entre eles um contraste muito claro: os sentimentos. O cineasta italiano povoa a tela com personagens tomados pelo tédio e pela esterilidade, enquanto em Yoshida as emoções costumam ser sempre intensas, reprimidas ao máximo antes de entrar em erupção.
Aí reside a forma cinematográfica como chave existencial de Yoshida: no meio. Nos colocando sempre atrás de uma cortina opaca, ao combinar uma mão muito pesada e impositiva esteticamente com performances livres dos atores, Yoshida permite aos seres que habitam seus mundos um mistério essencial, uma angústia provocada pela existência que a câmera os impõe. Uma contradição intencional para que o filme saia do controle do cineasta, uma contradição que permite a auto-negação. Esse tom totalizante que se infiltra no trabalho do diretor pode ser sentido com mais potência a partir de seus filmes como cineasta independente, começando com História Escrita com Água e A Mulher do Lago, as obras realizadas logo após despedir-se do sistema de estúdios japonês.
Uma imagem essencial de A Mulher do Lago traduz bem o espírito de Yoshida como cineasta: à beira d’água, duas pessoas, paradas, trocam olhares – a câmera intervém no meio. A ligação de ambos existe apenas pelo que há nesse meio. A estaticidade dos personagens se traduz como uma autoconsciência, como o peso de uma existência imposta, que faz borbulhar os sentimentos em repressão que se evidenciam como se estivessem escancarados. O fim deste mesmo filme é um abandono, uma história que não termina mas que é abandonada ainda no meio do caminho, ainda em literal movimento: termina-se com um apagão em tela, que é ocasionado pelo próprio deslocamento de um trem ao passar por um túnel. Em um ato que seria típico de Ozu, Yoshida abandona uma história prestes a atingir seu clímax dramático – pois o que interessa é apenas acidente.
‘Não importa que significado, sentimento ou beleza absoluta esteja contido na imagem, se esse significado, sentimento ou beleza em si completa a imagem, então a imagem terá sido violada pelas mãos do cineasta; ficará completamente sem vida. A imagem não é autossustentável. Para que a imagem esteja repleta de novas imagens, formando associações infinitas – para que se negue – ela deve existir em um único momento. (…) A imagem também não deve narrar nada. Se alguém pode atribuir linguagem à imagem, é o público. A imagem cinematográfica irradia o movimento da interioridade do cineasta, do seu espírito. O único que pode aderir a esse movimento, enfrentar o futuro e dar-lhe sentido é o público, não o cineasta. (…) Só quando um filme fica preso entre os dois espelhos claros do ver e do ser visto, situado no meio de um reflexo sem fim, é que ele se torna opulento’
Kiju Yoshida em “My Theory of Film: A Logic of Self-Negation”.