A Busca na Memória Afetiva e o Resgate Territorial na Obra de Waldir Onofre

A preservação do íntimo regional em As Aventuras Amorosas de um Padeiro

Por Matheus Fortunato*

Amante do samba e admirador do cotidiano, Waldir Onofre foi um ator, diretor, roteirista e cineasta bastante memorável para a população brasileira, carioca e campo-grandense. Sistematicamente subjugado foi por vezes discriminado, sem recursos e apoio para a realização de projetos. Assim como Antônio Pitanga, Zózimo Bulbul, e tão importante quanto, Waldir foi uma das vozes do cinema negro, além de pertencer à luta antirracista se opondo fortemente ao regime militar da época.

“O mercado de trabalho para o ator negro aqui no Brasil praticamente não existe e é exatamente aqui no Brasil onde existe o maior número de negros fora da África. No entanto, para os que comandam o visual e a estética brasileira na televisão e no teatro, o negro simplesmente não existe. O visual que eles mantêm é o visual ariano e europeu, mas eu não reivindico nenhum visual negro ao Brasil, seja no cinema, televisão ou teatro, o que eu reivindico é o visual brasileiro, eu não estou na África e nem na Europa”¹

Waldir realizou um único longa, As Aventuras Amorosas de um Padeiro (1975) produzido por Nelson Pereira dos Santos. O longa trata de temas como liberdade feminina e oposição ao racismo e à figura do colonizador. Onofre chegou a roteirizar para o cinema a obra teatral A Noite de Alô, mas infelizmente não conseguiu realizar o projeto. Como ator, Waldir Onofre foi revelado em Cinco Vezes Favela (1962) e também atuou em filmes como Memórias do Cárcere (1984), A Falecida (1965) e em A Dama do Lotação (1974). Assim como foi citado anteriormente, o primeiro longa de Onofre teve influência forte de Nelson Pereira dos Santos via Embrafilme, sobretudo pelo diretor ter obtido uma visão sobre Waldir que ninguém conseguiu:

“Eu, por exemplo, um projeto que eu coloquei [na Embrafilme] e batalhei foi o do Waldir Onofre (As Aventuras Amorosas de Um Padeiro) […] O que eu via era que o Waldir Onofre pertencia a outro mundo, outro universo que não tinha acesso à expressão cinematográfica e ele poderia contribuir com uma coisa nova, como de fato aconteceu.”²

Na década de 70, surgiu um número expressivo de diretores negros, alguns deles tendo relevância com o cinema novo e outros não, Onofre estava mais próximo do primeiro grupo. Posteriormente, um cineasta paulista chamado Jeferson De apresenta um manifesto público chamado de dogma feijoada, um movimento para repensar a imagem do negro no cinema brasileiro.

O SAMBA COMO PRELÚDIO PARA O ADULTÉRIO E O RESGATE TERRITORIAL EM AVENTURAS AMOROSAS DE UM PADEIRO

Cena de abertura de As Aventuras Amorosas de um Padeiro.

Na cena de abertura, o samba acompanha a apresentação de seus principais personagens, o marido Mário, o padeiro português Seu Marques e a recém-casada Rita. Não é por acaso que o samba faz o trabalho de levar o adultério até o espectador. Seja nos primeiros minutos ou nos vinte minutos finais do longa, o samba faz o papel de acompanhar o cenário de infidelidade na obra de Onofre.

O samba não é o único elemento diegético que se destaca, nos últimos momentos de filme o que ganha voz são os elementos de Umbanda até o encerramento do plano. Sendo assim, a importância de As Aventuras Amorosas de um Padeiro apenas se intensifica, chegando ao campo religioso, de suma relevância para o povo negro brasileiro.

O retrato cinematográfico de Waldir Onofre possibilita preservar a essência de Campo Grande de maneira que seu cinema consegue se portar como uma ferramenta de resgate territorial, ou seja, o cineasta conserva também suas raízes e de todos os moradores daquela região, especialmente pelo grande número de moradores de Campo Grande como atores. Sendo um amante do cotidiano, fica difícil acreditar que alguém além de Onofre poderia representar com tamanha naturalidade a população de Campo Grande, o diretor também utilizou de outras locações importantes como a Pedra de Guaratiba e a região de Sepetiba.

Desta forma, é inegável que Waldir Onofre tenha sido uma figura muito importante para os moradores do Rio de Janeiro e, particularmente, aos de Campo Grande. O fascínio pelo dia-a-dia na obra de Onofre demonstra uma das principais forças do cinema, preservar nossas raízes criando um ciclo de memórias impedindo que o tempo as dissipe.

Cena do filme que apresenta o sub-bairro São Basílio de Campo Grande e seu campo de futebol.

O ENCONTRO DA LIBERDADE FEMININA NA PRÓPRIA SEXUALIDADE O RACISMO NOS PESOS DE UMA TRAIÇÃO

O padeiro português Seu Marques e Rita a recém-casada.

Quando se trata de liberdade feminina por via da sexualidade, uma das primeiras obras que remete ao tema é A Dama do Lotação de Neville D’almeida, mas Waldir Onofre faz isso bem antes de Neville com As Aventuras Amorosas de um Padeiro. O filme pensa o drama inicial vivido pela personagem que se encontra insatisfeita na sua recém relação matrimonial e passa a explorar sua sexualidade, assim encontrando a liberdade feminina.

Rita acaba se envolvendo com o padeiro e no sinal de qualquer tipo de perda de controle da relação, ela se envolve com outro homem, Saul, um artista às margens da sociedade, vale destacar que existe o racismo explícito na forma com que os personagens reagem ao saber que o terceiro homem é negro e todas ações mais punitivas ocorrem em relação à Saul.

As Aventuras Amorosas de um Padeiro é uma obra poderosa tanto do ponto de vista narrativo e quanto do social, seja pelo retrato do cotidiano, ou pela contemplação da liberdade feminina pela sexualidade da protagonista ou até mesmo pela crítica ao racismo e à figura do português colonizador. A obra de Waldir Onofre de um modo geral tem relevância imensa ao cinema carioca e brasileiro, quando opta por preservar suas raízes, isto é, protegendo o cotidiano íntimo de Campo Grande pelo cinema.

Sobre o autor: Matheus Fortunato é estudante de Administração, é apaixonado por cinema experimental e arte em todas as suas formas. Interessado pela maneira com que o cinema possibilita cada pessoa poder experimentar e produzir arte de diferentes meios.

Referências:

Tributo a Waldir Onofre (2015)

Oliveira, J. (2016). Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada” aos dias de hoje. In AVANCA. Avanca Cinema International Conference (pp. 646–654). Disponível em: https://www.academia.edu/download/47882811/Avanca_2016_-_Janaina_Oliveira_.pdf

Aquino, I. (2019). CINEMA NEGRO E POLÍTICAS PÚBLICAS: O Impacto dos Editais Curta Afirmativo no Cinema de Realizadores Negros no Brasil. Disponível em: http://www.rascunho.uff.br/ojs/index.php/rascunho/article/view/195http://www.rascunho.uff.br/ojs/index.php/rascunho/article/view/195

Carvalho, N. D. S., & Domingues, P. (2017). Dogma feijoada a invenção do cinema negro brasileiro. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/F8PqhJ4SqNGnhnjdJhKYpVK/abstract/?lang=pt

O texto acima não necessariamente reflete a opinião do grupo editorial da Revista Vertovina.