A Desassociação Biológica de Body Snatchers

Por Pedro Vidal*

A primeira imersão de Abel Ferrara no sci-fi, além de ser uma experiência aterrorizante, pode ser analisada como uma carta da juventude às instituições conformistas

Corpos violados, um sono maldito, criaturas desfiguradas e um grito ensurdercedor. O que parece ser apenas uma herança de Cronenberg no único trabalho de ficção-científica de Abel Ferrara é na verdade uma afronta juvenil aos valores americanos. Através da abordagem horrorizante, Body Snatchers se constrói como uma negação biológica amoral, uma representação da repressão que o aparelho social exerce na juventude e o desejo dela de romper com os moldes que lhe foram impostos.

Baseado em um clássico de ficção-científica escrito por Jack Finney em 1955, o livro possui a premissa de uma invasão alienígena nos Estados Unidos. Os seres humanoides isolam as famílias americanas em casulos e as substituem por duplicatas idênticas. O livro conta com três adaptações e é notável nelas um declínio do pensamento americano. Na terceira, de 1993, dirigida por Abel Ferrara, todas as instituições sociais se apresentam fragmentadas, destituídas de seu papel, como se tivessem jogado seus filhos a esmo e agora os prestassem um desserviço.

Pôster de Cannes de Body Snatchers

Ferrara se destaca diante das outras adaptações por ter alterado o manuscrito original de Jack Finney: a história é contada através das angústias adolescentes de Marti ao invés de um cientista. Desde o início do filme, existe uma relação de estranheza no domicílio familiar da adolescente, até mesmo um estado de desconfiança, que se converte em um ciclo de metamorfoses horroroso. O melhor exemplo disso é o grito “That isn’t my mummy!” do pequeno Andy, o filho legítimo, ao ver sua mãe ser trocada por um alienígena.

Marti e sua madrasta não se entendem, ela acredita que sua verdadeira mãe foi substituída por uma impostora e que seu pai foi corrompido — inclusive, o fato de que Carol, a madrasta, é a primeira da família a ser substituída, estipula o ressentimento de Marti. A relação com o pai também é conturbada: apesar dele tentar restabelecer laços com Marti, em situações de conflito sua postura é autoritária e caracterizada por uma imposição de valores aos quais Marti não se adequa. Até mesmo a relação com o meio-irmão caçula é confusa, ela gosta dele mas ressente a divisão de espaço e amor paterno.

Portanto, quando os membros familiares de Marti são substituídos por duplicatas alienígenas, a base psicológica da sua repulsão e oposição ao conformismo familiar já havia sido estabelecida. Marti deseja romper com as imposições que lhe são colocadas, ela se sente biologicamente pressionada por não pertencer a uma família estável, mas só consegue a partir da invasão alienígena.

Além disso, o fato da invasão se passar em uma base militar ao invés de uma típica cidadezinha americana no interior, como nas adaptações anteriores, garante a Ferrara uma crítica ao conformismo militar americano. O diretor propõe uma conexão muito engenhosa entre o regulamento rígido e conservador do exército e o comportamento dos alienígenas: ambos parecem ser uma extensão lógica do mesmo código, com seus discursos repressivos e a luta por um coletivo favorecido. A mentalidade militar torna impossível distinguir aqueles que são soldados profissionais daqueles que são alienígenas desprovidos de emoções. Através da rica direção de Ferrara, a câmera exalta a postura ameaçadora dos soldados e seus rostos são obscurecidos pela iluminação fraca, limitando sua individualidade.

Durante o filme, a formação das duplicatas na família de Marti e no corpo do exército toma uma proporção de disseminação genética que aguarda as mais tenebrosas ampliações de poder. A invasão alienígena representa no filme a afirmação dos valores conformistas americanos, pois ela só é possibilitada porque as instituições sociais são justamente conformistas. Ou seja, Ferrara sugere que foi a fraqueza interna presente que permitiu o triunfo da invasão alienígena, esta apenas intensificou as tendências preexistentes.

A consumação final é atingida quando Marti mata todas as duplicatas de sua família e Tim — piloto do exército, sugerido como namorado da adolescente — explode reservas do exército. Dessa forma, ambos cessam a extensão biológica do poder das instituições. Os únicos personagens que não são substituídos pelos alienígenas são Tim e Marti, ambos inconformistas e rebeldes contra as instituições. Tim, que lutou na Guerra do Golfo e matou outras pessoas em nome da pátria, representa a insubordinação aos militares; e Marti, sufocada pela imposição dos genes de seus superiores, a insubordinação à família.

No final, a juventude luta pela sua sobrevivência, uma sobrevivência individual de um coletivo — representado pelos alienígenas mas incorporado na sociedade — que deseja que todos os seus semelhantes se integrem em um mesmo tecido conjuntivo. O filme nos deixa com a epígrafe: “Where you gonna run? Where you gonna hide? Nowhere. Because there’s no one like you left.” Largada e sem destino, a juventude procura por seu lugar no mundo. De forma aterrorizante, Abel Ferrara constrói um terror simbólico que proclama pelo rompimento biológico com as morais conservadoras e conformistas americanas.

Referências:

The Monster Always Returns — Christian Knöppler

https://buffalonews.com/news/abel-ferraras-body-snatchers-strange-but-it-grows-on-you/article_132f75fd-f586-5600-b8d0-943bc337e27c.html

https://www.rogerebert.com/reviews/body-snatchers-1994

http://www.rouge.com.au/rougerouge/sleep.html