O longa alemão ‘Von morgens bis mitternachts’, de 1920, visto a partir de seu contexto sócio-histórico
Por Paola Orlovas
O longa ‘Da aurora à meia-noite’, ou ‘Von morgens bis mitternachts’ (1920), do diretor expressionista alemão Karl Heinz Martin (1886–1948), é uma adaptação da peça de mesmo nome, escrita pelo dramaturgo Georg Kaiser (1878–1945), e trata de um caixa de banco de uma cidade pequena, que, infeliz com a sua condição de vida medíocre, decide roubar 60 mil marcos do estabelecimento em que trabalha e ir atrás de uma mulher que havia atendido.
O roteiro do filme, adaptado por Martin e um de seus cenaristas, Herbert Juttke (1897–1952), foi feito sem que Georg Kaiser, que escreveu a obra durante o início da década de 1910, tivesse grande interesse pelo resultado final.
A peça teatral de Kaiser, que foi denominada um Stationendrama — um “drama de estações”, em que histórias são contadas a partir de diferentes cenas e imagens conectadas ao protagonista — gênero altamente expressionista, foi impressa em 1916 e apresentada em palcos apenas a partir de 1917, em uma Alemanha já afetada pela Primeira Guerra Mundial (1914–1918).
A narrativa, por vezes moralista, tenta alertar o espectador dos problemas trazidos pela ganância, afinal, o protagonista, interpretado por Ernst Deutsch (1890–1969), não é um exemplo a ser seguido: seu feito é descoberto, e então ele deve fugir de sua cidade e abandonar sua família, o fazendo repentinamente e com certo desprezo.
A própria caracterização do Caixa, chamativa e obscura, também passa a ideia de que ele seria apenas um homem sem muito dinheiro, já de certa idade e que não conta com uma boa aparência:
Ernst Deutsch como o Caixa, ‘Von morgens bis mitternachts’ (1920)
Em cada um dos cinco atos, que não recebem nomes, o Caixa, um homem pouco memorável, encontra com diferentes pessoas, que, de forma ou outra, lembram-no da morte, e, com o uso da caracterização, são mostradas brevemente como caveiras:
O Caixa (Ernst Deutsch) encontra a morte em uma
moradora de rua, ‘Von morgens bis mitternachts’ (1920)
Não é à toa que o Caixa enxerga a morte em outras pessoas, principalmente naqueles em situações de vulnerabilidade, e com isso as desumaniza. Sigmund Freud (1856–1939) diz, em ‘O desapontamento perante a Morte’, texto escrito em 1915: “desencaminhados andamos no significado por nós atribuído às impressões que nos oprimem e no valor dos juízos que formamos”.
Tanto a peça de Georg Kaiser quanto a adaptação cinematográfica de Karl Heinz Martin devem ser inseridas dentro do contexto sócio-histórico de quando foram feitas. Não apenas a Alemanha, mas o continente europeu como um todo, sofria com a Primeira Guerra Mundial, que duraria de 1914 até 1918, e as suas consequências.
A guerra, para Freud, traria diversos desapontamentos e uma mudança da visão sobre a morte para aqueles que não foram combatentes diretos nela. Isso ocorreria a partir de uma mudança nas normas morais, que desencadeariam um ajuste na conduta, e criariam espaço para uma nova abordagem da morte dentro do início do século XX.
Em ‘A nossa atitude diante a morte’, também publicado em 1915, Freud destaca o hábito humano de silenciar a morte, evitá-la e abalar-se por ela. O Caixa, por vezes um pouco espantado, não adota os “comportamentos peculiares” que Freud cita como recorrentes quando entramos em contato com a morte, como a honra e exaltação. No lugar do choque pela morte e decomposição momentânea de indivíduos, está a falta de reação, que os desumaniza ainda mais.
Os personagens dentro de ‘Von morgens bis mitternachts’ (1920), seguem um padrão expressionista, representando ideias e criando o que Korfmann, em seu artigo ‘Da aurora à meia-noite e a questão da intermedialidade no expressionismo’, chamaria de “drama do mundo”.
O ícone da morte, que aparece de tempos em tempos (e apenas brevemente) para o protagonista do longa, também nos remete às pulsões de vida e morte. Aquilo que o personagem vive em determinadas cenas é resultado da solidão e tristeza que buscou e em que se encontra, mas também da sua busca pelo prazer e pela alegria. Ver a morte enquanto abandona a sua própria filha, agora desumanizada, é um exemplo claro desta ambivalência de sentimentos.
A casa da família do Caixa, ‘Von morgens bis mitternachts’ (1920)
‘Von morgens bis mitternachts’ (1920) conseguiu passar pela censura alemã, mas nunca foi exibido comercialmente. Em 1987, foram encontrados documentos da censura datados de 1921, que listavam os quase cem letreiros da versão original do filme. Desde então, a produção de Karl Heinz Martin foi exibida em uma mostra da Universidade de Frankfurt, em 1968 e apresentada em canais de televisão da Alemanha Oriental entre os anos de 1978 e 1984. Em 2009, o filme foi restaurado, e recebeu um DVD, editado pelo Deutsche Filmmuseum München.
*Sobre a autora: Paola Orlovas é a idealizadora da Revista Vertovina. Estuda Comunicação Social com habilitação em Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, onde foi bolsista de Iniciação Científica, tendo integrado o Grupo de Pesquisa Comunicação, Cultura e Visualidades. Se interessa por estudos dentro dos campos da Imagem, da Estética e da História da Cultura, com foco em vanguardas artísticas do século XX, fotografia, Europa e União Soviética.
Referências:
SIGMUND, Freud. “Escritos Sobre a Guerra e a Morte.” Trad. Artur Morão (2009).
FUKS, Betty Bernardo. Da guerra e da morte. Temas da atualidade. de Sigmund Freud: um século depois. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 7, n. 2, p. 110–117, jul./dez. 2016.
KORFMANN, M. Da aurora à meia-noite e a questão da intermedialidade no expressionismo. Pandaemonium Germanicum, v. 15, n. 19, p. 49–81, jul. 2012.
CARDULLO, R. J. Appearance and Essence in Georg Kaiser’s FROM MORN TO MIDNIGHT. The Explicator, v. 70, n. 3, p. 170–174, jul. 2012.