A Figura Feminina em “L’Avventura” (1960)

por Davi Galantier Krasilchik

Ao se afastar da concretude de seus antecessores neorrealistas, Antonioni emancipa arquétipos femininos em jornada de indefinições. Com uma assinatura próxima ao lirismo e a abstração, ele reúne em Monica Vitti uma espiral de dilemas psicológicos que refletem o aprisionamento histórico da imagem feminina em uma condição dúbia entre signo do desejo e símbolo pessoal próprio.

Reconhecido por muitos como um verdadeiro ponto de ruptura em relação à tradição do cinema neorrealista, o estilo de Michelangelo Antonioni já despertou incontáveis ponderações. Dono de uma grande pujança na manutenção das ações de suas personagens, compositor de grandes planos-sequência modernos, o seu modo específico de tecer relações entre figuras e espaços não tardaram em aproximá-lo de uma dimensão cinematográfica mais lírica e psicológica.

Nesse sentido, rostos arquetípicos, cujos traços se confundiam no coletivo e na representação social, e que tanto permearam as ruas registradas por diretores como Vittorio de Sica e Luchino Visconti, cediam seu espaço a portadores de cargas subjetivas e, talvez por isso, ainda mais profundas.

Os traumas sociais que retumbavam em obras como “Obsessão” (1943) e ‘Ladrões de Bicicleta” (1948) — nitidamente impressos numa exploração mais plástica das cidades e espaços corrompidos pelos males da Segunda Guerra Mundial -, tecendo relações mais sólidas, mas longe de serem positivas, entre não atores e os subjugados bairros operários italianos, se veem então suspensos em nome de uma dimensão mais transcendental. Embora seja injusto negar totalmente a presença de alguns tópicos mais ideológicos, haja visto claros comentários acerca da corruptibilidade do homem perante o dinheiro, por exemplo — e que no longa específico desse estudo de caso se faz presente, entre outros casos, na passagem em que uma suposta atriz é convertida ao papel de prostituta -, nas mãos de Antonioni ganham destaque questões ricas em volatilidade.

Incógnitas que pouco conseguem ser retidas pela oralidade, dissolvidas pelo ambiente e não por acaso desafiando a conexão daqueles que o habitam consigo mesmo. Esse flerte com a abstração já se fazia presente, ainda que não na mesma intensidade, na filmografia de Roberto Rosselini, que por si próprio já elegeu atores profissionais para construir narrativas que, mais uma vez, buscavam entrelaçar objeto e espectador através desse campo mais sentimental. Enquanto as protagonistas interpretadas por Ingrid Bergman ainda lidavam com ameaças mais diretas — tais como ameaças concretas de tortura e de perseguição ideológica -, ficou reservado a Monica Vitti o papel de amplificar essa crescente dicotomia entre o real e o suspenso.

Em 1960, a grande atriz italiana protagoniza assim o assombroso “A Aventura”, longa que inaugura a famosa tetralogia da “Incomunicabilidade”, finalizada com “Deserto Vermelho” (1964). Pertencente a uma esfera de classificação completamente única, a própria ambientação desse longa “inaugural” também subverte as ferramentas reproduzidas até o momento, propondo uma transfiguração de símbolos e paisagens bastante concretas em uma espécie de “não lugar”. Aliado a isso, temos também uma renovação no posicionamento da figura feminina, que se perde em meio a uma relação bastante intrínseca entre símbolo estagnado capaz de se estabelecer e entidade etérea que espelha incontáveis sensações humanas.

Munida de fragilidades, a Claudia de Monica Vitti também emerge perante o meio muitas vezes, objeto de cobiça e disparador da pequenez de Sandro (Gabriele Ferzetti) perante a própria natureza masculina.

Trazendo uma miríade reflexiva da grande complexidade dos relacionamentos amorosos, o longa parte da viagem entre Anna (Lea Massari) e Sandro, casal à beira do casamento que parte para o mar junto a um grupo de amigos. Entre eles, encontramos Claudia, grande amiga da primeira e outro cobiçado alvo do desejo do último. Quando Anna desaparece indefinidamente, a dupla restante se vê à mercê de uma paixão irresoluta há muito pré-determinada.

Hábil na arquitetação de laços inseguros e severamente maleáveis, Antonioni estabelece um aterrador senso de inevitabilidade desde a sequência inicial. Embora a continuidade da câmera em plano sequência exprima um falso senso de controle no avançar de Anna — impressão ainda reforçada na impressionante “dança” que trava com seu pai, buscando o primeiro plano ao reivindicar para si o direito de opinar sobre o próprio futuro -, a mesma avança até se deparar com Claudia, que a aguarda para que possam dar início à viagem. Além de unificá-las, prendendo as personagens desde cedo por meio de um teor metafísico de uma contagiosa perdição, essa passagem antecipa sabiamente uma das principais viradas do enredo. Em um longa que tanto discute a desconexão particular para com o espaço e o todo, surge aí uma dura sentença que prova a incapacidade humana de se investir contra o universo — e que nem por isso anula o nosso ímpeto de buscar resoluções vazias.

Anna separa Sandro e Claudia, se deslocando de sua condição humana para incorporar imageticamente a tensão incomunicável entre os outros dois.

Em relação a essa última, é particularmente rica a grande passagem da ilha, eleita como ponto geográfico intransitivo extremamente distante da concretude das cidades do neorrealismo. Embora a sua constituição física até seja referenciada por Giulia (Dominique Blanchar) — que, imersa em suas próprias confusões, comenta sobre o passado metamórfico, na forma de vulcões, dos rochedos que a sua vista alcança, eternamente indefinidos tal como as relações que estabelece ao longo do filme -, o que a direção elege para imperar é justamente a sua própria insustentabilidade.

Colocada pela visão subjetiva de todos os integrantes da “expedição”, que vagam em grupos desordenados pelos rochedos através dos quais se dispersam após o desaparecimento de Anna, essa sensação se materializa na desconexão em diversos campos de profundidade — que não apenas separam os integrantes das cenas como também corroboram para a imensidão do espaço que todos tentam, individualmente, preencher — e no atropelamento entre falas e hipóteses. Essa lógica do ruído sonoro — e que está presente em diversos momentos paradoxais, quando declarações orais de reconhecimento próprio e valorização se contradizem com as ações performadas — reside aí de forma particularmente interessante em função do desaparecimento de Anna.

Incapaz de determinar o que realmente nutre por Sandro, Anna conduz a câmera por algumas de suas investidas através do relevo rochoso. Todavia, são numerosos os cortes que aqui separam as figuras ali presentes e minimizam essa condução cuidadosa, obstrução que terá seu ápice em um abandono não anunciado da personagem. Subtraída completamente, Anna é condenada à própria inexistência, dividida entre uma ausência inexplicável e as vontades controladoras de Sandro. A forma como os demais tentam justificar o seu desaparecimento, julgando estarem aptos a adentrar as motivações de seu inconsciente, a neutralizam completamente, a proibindo de existir em uma dimensão privada e pessoal. Anna se transforma em símbolo, uma mentira ilusória, desaparecendo ao fazê-lo.

A sequência em que Claudia desperta a atenção de incontáveis homens, expulsa de quadro em alguns momentos pela priorização desses mesmos, rima com esse desaparecimento universal do feminino.

A partir desse momento, passamos a acompanhar as manifestações desse efeito crônico sobre Claudia. Para além de uma extensão semiótica de sua amiga, todavia, a personagem de Monica reproduz uma resistência mais duradoura, embora ainda se perca nas indefinições proporcionadas pelos choques que Antonioni proporciona entre a humanidade e a sua própria natureza.

A câmera acompanha Claudia pacientemente enquanto ela abre uma janela, apenas para se deparar com o distanciamento entre si e qualquer ponto de clareza.

Após uma discussão sobre a moralidade do novo relacionamento, a bordo de um trem cujo local de destino parece nunca ser alcançado, por exemplo, um plano que ilustra o mar através da janela de vidro é logo encapsulado pelo interior do veículo, onde Claudia se encontra conjuntamente aos próprios demônios.

Essa indecisão acaba também se convertendo em um caráter particularmente voyeurista de sua figura, materializada em uma busca incessante por respostas — e que, querendo ou não, também flerta com a posição do espectador para além da tela. Do encantamento à obsessão, a protagonista se insere em uma busca por respostas que jamais será capaz de encontrar, se deixando definir especialmente por sua própria incompletude. Isso determina a lógica oscilante por meio da qual intermedeia seu relacionamento com Sandro, condicionada por um jogo que varia entre o reconhecer do outro como figura dimensionada e a submissão do mesmo a uma redutora condição objetificante.

A dicotomia entre o espaço ilimitado, que Claudia busca com o olhar, e uma parede limitante, repleta de símbolos religiosos.

Finalmente, aterrador é o desfecho inconclusivo, ao qual a longa aventura de Claudia, agora traída por seu amado, nos leva. Presa entre a ânsia de romper a dependência emocional nutrida por Sandro e a incapacidade de o fazê-lo, a personagem é convertida em signo pela aproximação da câmera de sua mão, unidade mecânica que aqui corrobora para os múltiplos questionamentos em tela.

Estaria ela destinada a se deixar definir pelos demais, dissolvida nas angústias e desejos generalizados, ou existiria uma profundidade particular em seus dramas? Embora não existam respostas definitivas, fica clara a grandiosidade dos fazeres de Antonioni, que acrescenta dubiedade aos formalismos do neorrealismo italiano para tornar mais humanos, e ainda assim bastante individualizados, os desafios enfrentados pelo feminino nos limites desenhados entre o signo e a realidade.

A dualidade entre a infinitude turva do meio e a plasticidade redutora de objetos físicos da ação humana, que representa o triste afagar de Sandro com a sua mão: o reconhecimento incomunicável da incapacidade de decidir como seguir nesse relacionamento, espécie de acordo de necessidades turbulentas.

Fontes:

https://www.planocritico.com/critica-a-aventura/

Pereira, Juliana Rodrigues. A aventura : notas sobre o estilo de Michelangelo Antonioni /

Juliana Rodrigues Pereira. — Curitiba, 2018. 110 f.

AUMONT, Jacques e MARIE, Michel. Análise do filme. 1ª edição. Lisboa: Edições Texto &

Grafia, 2009.