A iconografia feminina de Ripley na cultura cinematográfica

Como Ellen Ripley construiu carreira no cinema em filmes de grande público masculino sem que deixasse de pautar sua construção e dramas em sua natureza feminina

Por Lucas Cavalcanti*

O primeiro filme da franquia Alien contava com uma aura inspirada em Jaws mesclado com Texas Chainsaw Massacre, configurando uma ficção científica de terror. Naturalmente, já ganhava destaque pela sua excelência em realmente fazer o público temer a escuridão no alongamento do tempo da tensão dirigida por Ridley Scott. Relatos da época diziam que os gritos eram frequentes nas sessões, e até mesmo náuseas e vômitos por conta de uma cena específica envolvendo um “nascimento” nada programado pelo pai.

“Uma das coisas que perturba todas as pessoas é o sexo. E eu disse ‘agora vou atacar a audiência; vou atacá-la sexualmente. E não vou fazer isso com a audiência feminina, vou atacar os homens. Vou colocar isso em uma única imagem que faça os homens na plateia cruzarem suas pernas. — Dan O’ Bannon, roteirista de Alien

Mas um dos grandes triunfos de Alien (1979) sem dúvida alguma foi dar visibilidade a algo também dificilmente visto: o sobrevivente (e consequentemente quem ganha o posto de herói e coragem ao longo da história) era uma mulher. Sigourney Weaver logo no começo de carreira já vestia a jumpsuit de Ripley, em que deu vida à sua personagem de maneira que demonstrasse postura, bravura e voz de comando, ao mesmo tempo em que o drama de sua personagem em tela dependeria de momentos em que a sensibilidade da personagem precisaria de eventual fragilidade.

Ripley em confronto direto para tomar o posto decisivo na nave Nostromo quando a situação se torna alarmante.

O diferencial, é que a personagem ainda empregava todas essas emoções sem deixar de lado a femininidade tradicional (curiosamente, ao ela própria ver seu screen test, agradece que tenha tomado uma direção mais natural ao posto de uma mulher, diferente deste em que ela posava de “bad girl” aos diálogos regados de “bullshit” acompanhados de um cigarro.) Isso tudo quase não aconteceu, vendo que sua personagem originalmente havia sido escrito para ser um homem. Eventualmente, quando se começou a retrabalhar o roteiro e a unidade fílmica, a personagem começou a ganhar substância, o conteúdo mudou. E partindo disso, os subtextos de abuso sexual masculino também surgiriam.

No primeiro filme, ela só passa a ter destaque por volta da metade da projeção, logo quando o Capitão Dallas (Tom Skerritt) é assassinado pela criatura. Sua única companheira feminina até então era Lambert (Veronica Cartwright), que não possuía a princípio a mesma força de atitude que Ripley teria de ter para assumir o controle da situação em um ambiente excessivamente masculino. As ameaças do filme tomam uma posição de violência sexual: o que vai desde o embrião colocado pelo facehugger de maneira violenta dentro do corpo humano; até o design do xenomorfo, com sua anatomia orgânica e industrial (a carapaça e a sua língua em formatos fálicos); e chegando até a figura do androide Ash (Ian Holm), representando o interesse econômico da corporação que visava o alienígena como arma biológica, e que até mesmo violenta Ripley com uma revista enrolada (a violência com um objeto fálico à sua maneira, já que sua constituição robótica não o dá a natureza sexual humana corrompida).

A brilhante interpretação de Sigourney, que em uma passagem rápida de olhar consegue transmitir vulnerabilidade mas autocontrole logo após para tomar a coragem e enfrentar o medo.

No final do filme, Ripley escapa após um confronto direto com o abusador, o eliminando e só assim consegue escapar do terror que leva todos os seus companheiros em uma trágica viagem de trabalho. Essa relação com ambientes excessivamente masculinos e hostis é recorrente na jornada de Ripley ao longo dos quatro filmes, ao mesmo tempo em que sua feminilidade é expandida (ou até mesmo removida).

Sete anos depois do primeiro filme, em 1986, chegava aos cinemas Aliens, agora na direção das mãos de um novato James Cameron. O subtítulo “This time it’s war” (“Agora é guerra”) já se distancia de cara do que havia se estabelecido em tom anteriormente.

O instinto materno aflorado no material promocional.

Após hibernar no final do primeiro filme, Ripley dorme por cerca de 57 anos, sendo encontrada enquanto vagava no espaço. Ao acordar, ela se depara com duas notícias alarmantes: sua filha (que ela havia deixado antes de partir) já havia falecido naturalmente; e o planeta alienígena do qual seus companheiros haviam explorado sem cuidados no primeiro filme agora estava habitável e servindo de colônia para famílias. Não demora para que ela receba um chamado de ajuda ao perderem o contato com as colônias, o que a leva para uma expedição cercada de soldados exalando virilidade em seus mais diferentes tipos de armamentos futuristas.

Em Aliens a personagem ganha um primeiro nome, Ellen, e também camadas ao ter um drama familiar construído após os eventos do primeiro filme. Eventualmente, ela e a equipe encontram Newt (Carrie Henn), uma garotinha filha dos colonos que haviam descoberto o planeta alienígena (e consequentemente os primeiros a serem mortos). Em meio aos montes de tiros e xenomorfos despedaçados no Vietnã espacial de Cameron, é construída uma relação maternal entre as duas, que até ganha uma sutil possível figura paterna quando são poucos os sobreviventes, e Ripley cria uma proximidade com o cabo Hicks (Michael Biehn).

Essa continuação adiciona uma figura na mitologia alienígena que engloba no clímax um grandioso conflito materno: a Rainha. Assim como Ripley assume todos os riscos para salvar aquela que simbolicamente representa a sua cria, os xenomorfos ganham aqui uma figura materna que fará o mesmo. Ao final do filme, temos uma sequência de ação frenética em que as duas mães se colocam em um conflito físico.

“Get away from her, you bitch!’’

Ripley vence, e assim como no primeiro filme, joga o alienígena ao vácuo espacial e novamente se coloca para hibernar. Desta vez, acompanhada da sua nova família, mesmo que de maneira simbólica. Um final um tanto quanto otimista. “Posso sonhar?” — pergunta Newt. “Acho que nós duas podemos…’’- responde Ellen.

O final idealista é brutalmente anulado em 1992, quando Alien³ chegava aos cinemas encabeçado por um estreante em Hollywood, David Fincher, que traria uma industrial estética gótica introspectiva e usaria do terror psicológico desolador para ambientar o novo capítulo. Logo nos primeiros minutos de projeção, temos vislumbres de um incêndio ocorrido enquanto os sobreviventes do filme anterior hibernavam. Como medida automática de emergência, uma cápsula de fuga é separada da nave e cai em Fury 161, um planeta prisão habitado por presos que nos confins do espaço, se apegaram à religião como única esperança.

A estética suja e desoladora que exala desesperança em Alien³.

A hostilidade masculina que se manifestava mais sutilmente pelo elemento militar no segundo, aqui é trocada de maneira bruta pelos presos aos quais eventualmente ela terá de se aliar se quiser (mais uma vez) acabar com a ameaça alienígena. Aos poucos, o universo feminino começa a ser tomado de Ripley pelo xenomorfo: no primeiro filme, ele a toma da possibilidade de viver com uma igual (Lambert); no segundo, o de sua filha e de constituir um núcleo familiar; e aqui no terceiro, além do elemento materno, a caracterização a iguala aos seus novos aliados, com roupas largas, sujas e de cabeça careca, a distanciando totalmente de um universo feminino até mesmo na aparência física.

A ironia aqui também se encontra no fato da maternidade de Ripley estar diretamente relacionada ao futuro de seu agressor: ela estava carregando um embrião xenomorfo. E não era um qualquer, era o de uma rainha. Ao descobrir, a perversa corporação Weyland-Yutani tenta persuadir Ripley a ir com eles, jurando fazer uma cirurgia que destruiria o invasor e a prometendo uma nova chance de constituir tudo do qual sempre sonhou.

A direção formalista de Fincher enquadra meticulosamente a construção da tensão física e psicológica.

Mas a voz da razão de Ripley não deixaria de agir aqui, e a tenente nega, escolhendo o seu sacrifício ao lugar de sequer cogitar com a possível possibilidade de viver enquanto tentariam testar a espécie que havia destruído a sua vida. Ela sabia, afinal, que era uma criatura indomável.

Se o final de Alien³ a princípio havia sido estabelecido (e pedido pela própria Sigourney) para que não desse brecha para uma continuação, em 1997 tudo seria simplesmente jogado ao vento.. Alien Resurrection inventaria a inesperada atitude de clonar a personagem principal, ao mesmo tempo em que a direção de Jean-Pierre Jeunet também clonaria diversos dos elementos que fizeram das continuações anteriores distintas uma das outras. E claro, banharia tudo com o seu olhar caricato de humor e estética excêntrica.

Duzentos anos após o seu sacrifício, Ripley é clonada em uma operação que visava tomar a rainha xenomorfo incubada em seu corpo. O plano, obviamente, era tudo que Ripley sempre queria impedir: a criação de um exército de xenomorfos usados como armas biológicas. E sendo o quarto filme, obviamente já se era esperado que em dado momento da história algo aconteceria e que teríamos xenomorfos se escondendo no escuro de naves inabitadas.

O diferencial para o arco de Ripley aqui, é que se nos anteriores ela se distanciava cada vez mais da sua natureza feminina, aqui o que fica em jogo é a ambiguidade da sua humanidade. A clonagem a fez ter uma relação híbrida com o xenomorfo do qual ela carregava. Agora, ela é dotada de maiores reflexos e instintos, além do sangue, é claro, também ter poder de acidez igual o de seus antigos inimigos (e agora, “familiares”).

Já não há mais o que temer: agora ambos são da mesma natureza.

Resurrection foi o último filme a contar com a presença de Ripley, embora não tenha sido o último da franquia Alien. Muitos a comparam com Sarah Connor, de outra franquia da qual James Cameron também idealizou. Mas Sarah, principalmente quando atinge o seu ápice heroico em Terminator 2: Jugdment Day, tanto sua caracterização como sua personalidade, exalam muito mais um teor de virilidade do que propriamente uma heroína que é calcada em atitude sem perder os traços femininos.

Charlize Theron como Furiosa.

Dessa maneira, o legado de Sigourney com Ripley é até hoje presente (Charlize Theron por exemplo diz ter se inspirado na própria para compor sua personagem, Furiosa, em Mad Max: Fury Road), inspirando a bravura e coragem em mulheres, sem que as façam deixar de ser quem são em sua natureza.

*Sobre o autor: Nascido e crescido em São Paulo, foi estudar cinema no interior do Paraná (UNILA) através das convenções dramáticas da vida. Desde sempre interessado em arte, ainda se fascina com a potencialidade dela em ilustrar as mais diversas vivências e singularidades no âmbito visual.