A Imortalidade Desvirtuante de “Solaris”

Por Davi Krasilchik

Uma das melhores maneiras de se abordar a relação entre o homem e o desconhecido parece ser a abstração espacial. Dotado de incertezas e incontáveis possibilidades, o mirar do espaço sideral já rendeu diversas epopeias, muitas das quais se deixaram levar, no entanto, por sedutoras opções estéticas e pela materialização de ameaças pouco compreendidas.

Monstros inimagináveis já destruíram incontáveis aeronaves, e criaturas grotescas poluíram o imaginário de diversos indivíduos. O flerte com aquilo que a ciência ainda é incapaz de decifrar, dessa maneira, já se materializou de maneira extremamente concreta, condicionada a representações literais de medos e questionamentos universais.

Reconhecido por sua assinatura extremamente humanista, não é de se surpreender que a adaptação homônima do grande livro Solaris, feita pelas mãos de Andrei Tarkovski, assuma dimensões tão abrangentes, ao seguir por outros caminhos.

Após o retorno de uma expedição de astronautas, a identificação de um fenômeno inexplicável passa a assombrar a comunidade científica da Rússia. Esta decide encontrar um especialista para esclarecer essas urgentes incógnitas, obrigando o cientista Kris Kelvin (Donatas Banjonis) a retornar à estação espacial que orbita o misterioso planeta Solaris.

Conforme resultados assombrosos começam a evidenciar o perigo apresentado pelo astro, cabe à Kris decidir qual postura a estação deverá adotar. Tudo piora quando o homem começa a ser perturbado pelo fantasma de sua falecida esposa, que passa a assombrá-lo pelos corredores da unidade de pesquisa anos após cometer suicídio.

O enorme apreço que Tarkovski desenvolveu em sua carreira em relação ao conceito de finitude aparece dentro do livro ‘Esculpir o Tempo’, escrito pelo diretor e publicado em 1985. De acordo com as palavras do russo, o tempo seria necessário “para que o homem, criatura mortal, seja capaz de se realizar como personalidade”. Indo mais a fundo, Tarkovski explora a constante volatilidade desta determinação, abstraindo as ações que ela determinaria sobre a ação humana para um campo distante da finitude física e linear.

Para o cineasta, o tempo corporifica o homem em uma instância moral, uma espécie de consciência internalizada, que, em decorrência da constatação de um eventual término, fundamentaria as intermináveis buscas humanas pelo refinamento de seu próprio espírito.

Intrinsecamente ligada a este processo está a memória, de igual importância para Tarkovski. Carregando tamanha complexidade, a mera tentativa de definir a memória seria incompleta, o que deve ser feito em um campo espiritual, segundo o artista.

Não é difícil observar o grande leque de discussões que a associação destes dois princípios permite, uma breve observação da filmografia do diretor. Se os posteriores ‘O Espelho’ (1975) — uma verdadeira digressão realizada através de memórias individuais, que acabam se fundindo a outras em um exercício de observação compartilhada da história, construído por meio da interação com os demais — e ‘Stalker’ (1979) — obra-prima, que também se sustenta na exploração de um campo da ficção-científica para tratar da psique humana e sua relação com conceitos metafísicos — , a experimentação inicial feita aqui não deixa a desejar.

Desde o início, chama a atenção a maneira em que o diretor determina a existência de narrativas dentro de sua construção fílmica, impondo um auto-reconhecimento de seu projeto como uma plataforma de fabulações acerca de indefinições da vida.

Neste sentido, é interessante como a familiarização com um vídeo antigo — que detalha a forma como o cientista anterior a Kris foi descredibilizado — antecipa a viagem do protagonista ao espaço, inicialmente descrente em relação a esse tipo de descrição mais ficcional que a mente humana seria capaz de produzir.

Ainda mais curiosa acaba sendo a sucessão desta viagem, uma montagem consideravelmente extensa que registra o retorno de Henri Berton, o astronauta desmoralizado, para sua casa. Abstrata, ela contrapõe a concretude da cidade modernizada, retratando os borrões deixados pelos veículos em alta velocidade com a abstração temporal que tanto encantava Tarkovski.

Assim, longos minutos são concedidos para o estabelecimento de uma relação infindável entre o espectador e as reflexões, ou, pelo menos em uma camada menos racional, as sensações, que são propostas pelo diretor. Aqueles que acompanham são forçados a modular o dinamismo das imagens em movimento, robotizadas pela materialidade dos objetos ali impressos, usando da subjetividade humana.

E esta mesma dicotomia se mantém, claramente, uma vez na estação espacial, centro literal onde antigos fantasmas da personalidade do pesquisador se manifestam. Amargurado pela morte de sua esposa, Hari (Natalya Bondarchuk), passa a ser afetado por uma propriedade de Solaris que impõe a materialização de traumas e memórias dos passageiros da unidade espacial.

Seguindo por este âmbito, a direção traça um elo entre essas manifestações — que em poucos segundos demonstram uma literalidade maior que distorções psicológicas — e a existência de formas de vida extraterrenas. Ao emular antigas figuras que os cientistas ali presentes tiveram em suas vidas, entretanto, o quão convincentes seriam as suas interpretações da natureza humana?

Experimentos e encontros científicos como aquele, motivados especialmente por uma postura racional, poderiam emular dimensões imensuráveis e, portanto, invariavelmente exclusivas da espécie humana? É justamente a partir de questões como estas, e tendo como norte a nebulosidade dúbia gerada pelas mesmas, que a segunda metade da obra se desenvolve.

No processo, o florescimento de uma nova paixão de Kris, pelo simulacro de sua esposa, se estabelece como novo fio condutor, imperando uma lógica dupla de afastamento e rendição a este estado natural tão responsável pela continuidade de nossa espécie.

Em outras palavras, se por um lado o cientista tenta dar continuidade a sua missão, investindo na manutenção de um posicionamento crítico que inviabiliza o reconhecimento de “Hari” como uma manifestação humana, e que inclusive passa a performar habilidades paranormais, por outro, acidentalmente cede às circunstâncias que tanto o determinam essencialmente.

Deste modo, se torna bastante nítida a maneira em que o filme utiliza da presença feminina para a determinação da humanidade de seu protagonista, que se encontra refletido nestes ecos de um passado melancólico. Até que ponto, todavia, a desconstrução científica desses mesmos estaria o afastando de sua própria humanidade, desnaturalizando a sua travessia através do tempo?

Subvertendo a finitude imposta pela mortalidade, a presença de Hari, verdadeira morta-viva, dialoga com as intensas curiosidades daquele que a dirige com relação ao tempo e a memória, apresentando intensas tentativas de se compreender a realidade como um eventual malefício para a sua própria natureza.

Obcecado pelo tempo, Tarkovski demonstra aqui uma ameaça que se vale justamente pela forma como as personagens tentam, de maneira praticamente arrogante, flertar com forças além da sua compreensão, e reconstruir o que determinadas bases mortais impuseram, punindo-as em função desse exercício que, em uma aproximação com o Doutor Fausto, entre outros exemplos mitológicos, ousa aproximar o homem de Deus.

É justamente este aspecto que justifica a grande urgência da sequência final, que coloca a grande revelação a respeito da total dominação da Terra pelos simulacros de ‘Solaris’ — e cujas cópias dos pais de Kris, em seu retorno ao lar, se mostram extremamente hábeis em seduzí-lo, prendendo-o em uma espécie de condição onírica eterna, proveniente de um merecido julgamento — como uma representação visual que se vale do conflito faustiano da decifração da humanidade como forma de se afastar da mesma.

Por conta desses fatores, tem-se em ‘Solaris’ uma obra totalmente associada às coesas pretensões autorais de Andrei Tarkovski, um homem fascinado pelas dimensões temporais subjetivas que fez de suas curiosidades transformadoras narrativas a respeito da incapacidade humana de superar a sua própria natureza.

Fontes:

1989. Tarkovski, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo, Martins Fontes, 1990.

TURIM, Maureen. Flashback in Films: memory and history. London: Routledge, 1989.

https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/17042/1/Tese%20Isabel%20Marinho%20vers%c3%a3o%20final%20biblioteca2.pdf