A Relação entre Tempo e Memória na Obra de Andrei Tarkovski

Através de uma articulação rítmica do tempo e da memória, Andrei Tarkovski concilia diferentes aspectos imagéticos e forma um cinema como poesia e uma poesia como cinema.

Por Pedro Vidal*

“O tempo é um estado: a chama em que vive a salamandra da alma humana. O tempo e a memória incorporam-se numa só entidade, são como os dois lados de uma medalha.” — Andrei Tarkovski.

A ligação singular de tempo e lugar constitui na obra do cineasta Andrei Tarkovski um papel fundamental, a matéria nunca é apenas física pois a sua impressão temporal distorce as suas características, moldando, dessa forma, o principal tema da filmografia do diretor: a memória. O lugar é sempre um espaço no tempo, certos locais podem servir como arquivos de eminências particulares, a memória determina a nossa humanidade.

Tarkovski explorou a memória com uma percepção filosófica por toda a sua carreira, a representação de uma lembrança como imagem carrega um peso literário que movimenta os espaços fílmicos do autor. Esse teor poético é fundamentado nas coisas que não percebemos no cotidiano, configurando um processo de internalização do comum que aproxima o cinema poético da realidade.

Pôster de Mirror de 1975

“Esculpir o Tempo” era o nome da teoria de Tarkovski sobre o cinema. Sua principal função seria alterar os padrões da nossa perspectiva temporal, desenvolvendo um ritmo particular e sofisticado. “O fator dominante e todo-poderoso da imagem do filme é o ritmo, expressando o curso do tempo dentro do quadro.” Ao usar tomadas longas com ritmos lentos e poucos cortes em seus filmes, o tempo se dilata e se perde, ressaltando, assim, a ligação entre um tempo e outro, o que constrói uma atmosfera onírica.

A memória em conformidade com a imagem é um ato de recriação, de reelaboração do momento vivido. Mirror, de 1975, uma obra autobiográfica do diretor, foi escrito como uma tentativa de explorar a perda de um lugar de infância — passou anos se escondendo com a família, longe de casa e do pai que lutava no front. O filme constrói uma alternância de explosões e implosões de imagens históricas e memoriais que remetem ao princípio de buscar entender a inquietude cotidiana. Na visão de Tarkovski, a atitude poética não está longe da concretude factual da vida real.

Tarkovski no seu exílio na Itália

A questão motriz que ascendia o ritmo e a espiritualidade de suas obras era a observação da vida em seu estado puro. No final das contas, as imagens não significavam nada mais do que elas próprias, mas ao mesmo tempo expressavam uma forma de dissolução na natureza que se assemelhava a um mergulho no cosmos cotidiano. A contemplação de elementos encantatórios da imagem formando uma celebração dos acontecimentos da vida, resulta na suspensão de elementos sombrios e um pesadelo confuso da existência através da força do poder sensorial do ritmo temporal.

Pois, para Tarkovski, essas aparições possuíam um significado eterno e só através do ritmo fílmico e teor poético seria possível alcançar a completa expressão da sua beleza. O haicai — poesia tradicionalmente japonesa — teve grande influência na construção desse argumento. Ademais, a poesia não era a única forma artística que o diretor buscou como inspiração, outras formas de expressão, como a pintura, por exemplo, foram fundamentais para a elaboração de sua obra — as de Pieter Bruegel tem uma participação importante no filme Solaris.

Obra Caçadores na Neve de Pieter Bruegel, Tarkovski era fascinado pela pintura renascentista

Através de diferentes tipos de registros imagéticos Tarkovski arquitetava suas ideias, ilustrou a memória através de vídeos de arquivo, em cores, preto e branco, sépia e até mesmo através da fotografia. A diferença no formato tangia o conteúdo do que o diretor queria esclarecer, dessa forma, se formavam diferentes regimes narrativos ao longo da película. Através da memória somos introduzidos a sonhos, acontecimentos históricos e até mesmo a ficção (no caso de Solaris).

Se Andrei Rublev se constrói a partir de uma perspectiva histórica da memória com o objetivo de apontar um momento crítico no desenvolvimento humanista da Rússia, o propósito de Mirror é entender as conexões entre a memória pessoal e as experiências históricas coletivas. Pois afinal, existem diferentes formas de se recordar da gota do orvalho escorrendo e essa é a magia do cinema de Tarkovski.

Momentos finais de Nostalghia de 1983, primeiro longa realizado fora da URSS, durante o exílio do diretor

Até mesmo na fotografia instantânea que Tarkovski começou a usar em 1977, essa reflexão incessante sobre o passar do tempo é evidente. Num momento particular da vida do grande diretor russo, — caracterizado por profundos conflitos com as autoridades do governo soviético que em breve o levariam ao exílio na Itália, — sua Polaroid SX 70 se torna uma companheira de viagem insubstituível. Operando como um caderno visual, uma ferramenta para congelar um fragmento da realidade, para parar o tempo e projetá-lo em um espaço infinito e absoluto, um meio para se apossar do tempo e da memória, capaz de permitir que os olhos vissem além dos limites da aparência.

Uma das inúmeras polaroids de Tarkovski, o livro Luce istantanea possui uma coletânea organizada dessas fotos

O olhar de Tarkovski visa investigar a vida cotidiana para produzir uma imagem mais próxima da realidade, desde o fluir da água, dos raios de sol brilhando nas folhas, até o som da chuva e dos rostos de entes queridos. A melancolia de ver as coisas pela última vez é a essência altamente misteriosa e poética que essas imagens nos deixam. A obra de Tarkovski aponta a importância de estar aqui no agora e se atentar aos lapsos momentâneos que nos deixam despedidas afetuosas.

*Sobre o autor: Pedro Vidal é estudante de Cinema e Audiovisual na ESPM, se interessa por cinema, música, literatura e fotografia. Enxerga nos subjetivismos e simbologias da arte um enorme potencial de transformação política e social da sociedade.

Referências:

https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14036090601151269

https://www.jstor.org/stable/23003643

https://offscreen.com/view/tarkovsky

http://magazine.photoluxfestival.it/en/time-and-memory-in-andrei-tarkovskys-photography/

https://www.erudit.org/en/journals/cine/1900-v1-n1-cine754/008710ar/

https://vomiteunconejito.wordpress.com/2020/01/24/poems-by-arseny-tarkovsky/

https://gwarlingo.com/2013/the-polaroids-of-andrei-tarkovsky-the-mystery-of-everyday-life/