Como é construído o jogo com a dialética das lembranças humanas na obra prima de Duras e Resnais.
Por Davi Krasil
Não são poucos os pensadores que se dispuseram a tentar compreender o papel da imagem como artifício para a transfiguração da finitude de acontecimentos históricos. Embora a expiração desses momentos possa ser subvertida pelo intermédio de outras estratégias — entre as quais podemos destacar a tradição oral, posteriormente convertida na prática da escrita -, seria injusto ignorar o fascínio originado pela dimensão imagética, capaz de enraizar lembretes compartilhados pelo imaginário coletivo.
É verdadeiro que o entendimento em relação a mesma nem sempre se expressa com positividade. Os escritos do crítico literário Roland Barthes, por exemplo, apontam para a um deslocamento natural da manifestação que é registrada, fadada a um desnaturamento condicionado por sua reprodução expressiva, mal que também seria denunciado pelo autor Walter Benjamin, em seu livro “A Reprodutibilidade da Imagem Fotográfica”. Nesse ínterim, ao lado da filosofia de nomes como Theodor Adorno e Max Horkheimer, co-fundadores da nomenclatura “Indústria Cultural”, é evidente esse esvaziamento da imagem para o qual tantos apontam, capaz de extrair a essência primária de memórias que nunca requisitaram uma imortalidade supranatural.
Para além dessa lógica filosófica, entretanto, é igualmente necessário reconhecer, paralelo a um código mercadológico que acaba se associando a sua produção em massa, que a adoração pelo visual também condiciona expressivos ramos artísticos. Dentre os quais merece destaque a Sétima Arte, dona de incontáveis recursos na imortalização de narrativas contadas por imagens.
Exercitando uma série de estratégias que são usualmente empregadas na construção de objetos fílmicos, um dos grandes exemplos dos múltiplos diálogos que o Cinema consegue estabelecer com a memória está no inesquecível “Hiroshima, Mon Amour”. O longa foi escrito pela magistral romancista francesa, Marguerite Duras, e pelo prestigiado diretor, Alain Resnais, que tem como uma das marcas de sua filmografia como um todo — conforme revelam, por exemplo, o igualmente desafiador “Ano Passado Em Marienbad” (1961) e o sombrio documentário, “Noite e Neblina” (1956) — o jogo com essa dialética das lembranças humanas.
Ambientado em uma Hiroshima recém devastada por mal resolvidas sequelas da brutal Segunda Guerra Mundial, a obra acompanha recortes do relacionamento entre uma atriz francesa, “Ela”, interpretada pela majestosa Emmanuelle Riva, e um arquiteto japonês, “Ele”, incorporado pelo igualmente excelente Eiji Okada. Provenientes de diferentes culturas e, principalmente, de nações que se chocaram, anos antes, umas contra as outras, os dois começam a se aproximar quando uma grande produção começa a ser gravada na cidade, levando-os a ingressar uma intensa jornada de rememoração do passado e permeada por reflexões acerca da natureza humana.
Logo em seu prólogo, por exemplo, Resnais tece um hipnotizante mosaico por meio do qual destrincha diferentes maneiras de se debruçar sobre os arquivos armazenados pelo imaginário coletivo. Misturando um fazer poético — conforme os quadros iniciais que harmonizam o entrelaçar de dois corpos à queda de fragmentos de areia, vestígios meta-diegéticos dos horrores invocados pelos anos violentos -, a representações documentais, com direito ao navegar subjetivo por um museu antigo, e até mesmo com dramatizações metalinguísticas consumidas por figuras ficcionais como o casal central, a sequência de abertura declara o seu amor pelo fazer cinematográfico e determina a sua força como amplificador de memórias não paralisadas no tempo.
Para além da pura beleza artística, entretanto, é interessante observar um certo temor de esvaziamento simbólico que o autor acaba demonstrando, próximo das inclinações pessimistas reveladas por Benjamin e Barthes, entre outras. Trazendo diferentes choques entre o casal apresentado, o diálogo desses minutos iniciais revela diversos questionamentos da parte da personagem de Okada, que duvida dos sentimentos nutridos pela atriz em relação às tragédias históricas. Se associando aos diferentes usos da linguagem cinematográfica, essas colocações revelam a ameaça outorgada pela banalização da imagem, por vezes responsável por afastar e minimizar o seu propósito inicial.
Essa tese acaba condicionando outras marcantes passagens de “Hiroshima, Mon Amour”, que jamais deixa de incorporar a dualidade entre a razão, que se volta friamente para acontecimentos ultrapassados, e a sensação incomparável deixada por eventos marcantes. Evidência dessa essência apresentada pelo longa está na igualmente marcante conversa que acontece entre os dois, em um restaurante, durante a qual “Ela” tenta destrinchar algumas de suas mais íntimas motivações ao revisitar antigos espectros de sua vida. No processo, somos guiados pela dramatização de alguns desses lapsos, recurso em cuja misé-en-scene transparece a artificialização propositalmente buscada. Todavia, o que realmente chama a atenção é o contraste entre a antiga persona apresentada, engolida por superficialidades, e o pesar genuíno que esses fragmentos exercem sobre a atuação de Riva no tempo presente de sua personagem.
Voltadas ao exercício das grandes paixões humanas, essas lembranças condicionam a eterna busca de “Ela” por conexão e pertencimento, ingredientes que determinam o florescimento de uma complexa história de amor. É a lógica da ressignificação de momentos através do tempo, capaz de embaralhar traumas e cortejos em uma complicada teia de laços humanos, tão inexplicável quanto a grande maestria do filme aqui em questão, que constantemente nos relembra das incógnitas com as quais flertamos durante toda uma vida.
Por mais determinante que essa passagem possa parecer, aquela que a sucede, e durante a qual acompanhamos o melancólico vagar de Emanuelle por entre as ruas e estabelecimentos que se reergueram em Hiroshima, em busca de um sentido que os ecos de sua mente são incapazes de fornecer.
Isso tudo para culminar em um emocionante desfecho — que não deve aqui ser revelado -, que eleva ao máximo as fusões entre o espaço e o homem que o poder das memórias pode proporcionar, unificando o geográfico ao humano como dois segmentos infectados pela ausência de finitude daquelas últimas. É um relato atemporal da rica dialética que reside por detrás dos procedimentos de manutenção das memórias históricas, fadadas a ecoarem eternamente para determinar — por meio de perguntas, para as quais talvez jamais encontrem respostas — a continuidade de nossa espécie. Contemporâneo de Barthes, essa funcionalidade de “Hiroshima, Mon Amour” atua de maneira aproximada ao pensamento do crítico André Bazin, que em seu texto “A Ontologia da Imagem Fotográfica”, expressou, em uma livre interpretação de seus dizeres, que a linguagem determinada pela fotografia se determina justamente por estar em constante desenvolvimento.
De maneira lúdica, extremamente poética, e impregnada por uma atmosfera que em diversos momentos parece se deslocar da naturalidade do mundo que nos reveste, é assim que Alain Resnais cimenta um dos conjuntos imagéticos mais humanos da história do cinema. Um conjunto de experimentações que convergem em um sistema tocante e energicamente poético, unificando almas aos lugares pelos quais os seus passos um dia ecoaram. e que fundamentam essências que se distanciam de aparências descarregadas. É a cisão entre o homem e os efeitos sensoriais de suas ações, que se em algumas ocasiões históricas determinaram consequências aterradoras, persistem na memória coletiva para motivar a eterna crença em amorosas e puras conexões humanas.
Referências:
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
BAZIN, André. CINEMA: Ensaios; Ontologia da Imagem Fotográfica. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade. … Magia e Técnica, arte e política — ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 2ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
Duras, M. 2013. Hiroshima mon amour: scénario et dialogues. Paris: Editions Gallimard.