A Transgressão Apocalíptica de “O Massacre da Serra Elétrica”

Como o filme de Hooper utiliza de aspectos socioculturais para desenvolver um pesadelo caótico, evidenciando que filmes de terror possuem o potencial de elucidar questões políticas e sociais.

Por Pedro Vidal*

“[…] Eles não podiam esperar nem gostariam de ver o tanto de loucura e tragédia que veriam naquele dia. Para eles, uma idílica viagem de carro à tarde de verão tornou-se um pesadelo. Os eventos daquele dia levariam à descoberta de um dos crimes mais bizarros dos anais da história americana, O Massacre da Serra Elétrica.” Após a espantosa introdução, fragmentos imagéticos de um cadáver em decomposição são expostos na tela, o título do filme justaposto em películas negativas banhadas em vermelho é revelado e se inicia o gritante Massacre da Serra Elétrica.

Ao longo do filme somos introduzidos a um típico grupo de jovens que se desloca a um lugar inabitado e se surpreende ao encontrar indícios de uma família canibal a solta. Seu impacto na história da indústria cinematográfica foi tão chocante quanto o seu título, tendo causado pesadelos aterrorizantes em gerações por décadas. O filme foi como um dos pioneiros no uso da clássica estrutura slasher, que viria a ser usada de modelo inúmeras vezes nos anos posteriores, mas com um diferencial: suas abordagens e temáticas não eram tão convencionais.

O filme contou com uma produção de baixíssimos recursos, com um orçamento de suados 140 mil dólares, o que contribuiu com a sua atmosfera caótica. As gravações duraram cerca de 4 semanas: o diretor Tobe Hooper queria filmar tudo o mais rápido possível para devolver o equipamento alugado, a equipe de filmagem teve que trabalhar sete dias por semana, de doze a dezesseis horas por dia, sem contar o calor exaustivo de 36 graus e a alta umidade que fazia no set. A cena do jantar com a família canibal levou 26 horas para ser filmada, o figurino da atriz Marilyn Burns ficou tão encharcado de sangue falso que estava praticamente sólido no dia seguinte. Ou seja, o terror do filme realmente estava fora de controle.

Apesar do filme ter recebido esse título no Brasil, a grotesca ferramenta utilizada pelo canibal Leatherface para dar cabo de suas vítimas era movida a gasolina, e não eletricidade, diferente do nome referido no título, mas essa não era a única contradição presente no filme. A informação de que o filme era baseado em uma história verídica também era falsa, Hooper esclareceu que este recurso não fora utilizado apenas para promover a imagem do filme, mas como uma resposta a “ser enganado pelo governo sobre as coisas que estavam acontecendo em todo mundo” como “os massacres e atrocidades na Guerra do Vietnã”.

Enquanto assistia os noticiários locais sobre os crimes violentos que serviram de inspiração para o roteiro, Hooper queria manifestar a crueldade brutal do ser humano presente nas mazelas sociais americanas, e usou do sanguinário Leatherface pra encarnar toda essa crueldade: “aqui o verdadeiro monstro era o homem, apenas usando uma cara diferente, então coloquei uma máscara literal no monstro do meu filme”. Dessa forma, o filme apresenta notáveis aspectos culturais e políticos que podem ser vistos como influências fundamentais para o seu desenvolvimento diegético e apocalíptico.

Set de gravação na cena final do filme. The Texas Chainsaw Massacre (1974) dir. Tobe Hooper

De acordo com o crítico de cinema Christopher Sharrett: “A paisagem apocalíptica de Hooper é um deserto de dissolução onde outrora um intenso mito é passado. As ideias e a iconografia […] agora são transmogrificadas em currais para gado, postos de gasolina abandonados, cemitérios profanados, mansões em ruínas e uma casa de fazendeiros psicóticos. The Texas Chainsaw Massacre é reconhecível como uma descrição sobre ‘o beco sem saída’ da experiência americana.” Sharrett defende que o filme é uma ironização do idílico modo de vida americano, em que “a validade fundamental do processo civilizador americano” se apresenta totalmente violada. O ambiente paradisíaco texano de verão é profanado quando somos apresentados a esse cenário brutalmente apocalíptico, em que, em plena luz do dia, desde o início do filme, um cadáver se degenera e adolescentes são agressivamente assassinados. Aqui o sonho americano é completamente transgredido e não passa de um pesadelo interminável.

Então, quando a personagem de Sally é forçada a “jantar” com grotescas criaturas à beira da demência total, simulando uma típica família de sitcom americana, em uma casa que é um espelho exageradamente degradado do lar ideal — móveis feitos de ossos humanos, uma galinha enfiada em uma gaiola de canário — , fica claro que o horror do filme é extremamente paródico e simbólico.

Gunnar Hansen e William Vail no set de gravação. The Texas Chainsaw Massacre (1974) dir. Tobe Hooper

Horror esse que brinca com a linha tênue entre a tensão e o teor cômico do filme. O maior exemplo disso é quando o cadáver em decomposição do vovô não consegue levantar o martelo pra assassinar a sua vítima, existe um efeito terrível e cômico nisso, no qual um gênero intensifica o outro para construir esse quadro visceral. Aqui, a instituição social da família é corrompida pois não corresponde aos padrões do consenso moderno.

Diante disso, o filme estabelece um panorama do “capitalismo canibalístico”. A família de Leatherface foi vítima do capitalismo industrial, pois ao decorrer da modernidade seus empregos como trabalhadores de matadouros tornaram-se obsoletos em decorrência dos avanços tecnológicos, ou seja, a família foi consumida pela era do consumo. Essa mesma relação é observada quando os assassinos encontram suas vítimas: um grupo de jovens consumidores, à flor da pele, se torna consumido pela fatal transgressão simbólica. Assim, é desenvolvida uma ironia — seres humanos são abatidos para se obter carne, tornando os seres consumidores em animais de fazenda. Hooper declara que: “De certa forma, eu achava que o coração do filme era a questão da carne, é sobre a cadeia da vida e a morte de seres sencientes”.

Tobe Hooper com sua Eclair NPR 16mm. The Texas Chainsaw Massacre (1974) dir. Tobe Hooper

Além disso, como forma de intensificar a bestialidade da obra, o filme não possui as pretensões hitchcockianas de desenvolver delicadamente ao longo do arco narrativo um suspense cadenciado e bem desenvolvido. Somos de cara apresentados ao assassino Leatherface — um ser monstruoso e enorme, com uma máscara de pele bronzeada, dotado dessa sexualidade aberrante — , que sem cerimônia alguma arrebenta a cabeça de um dos personagens com uma marreta, antes mesmo do espectador registrar qualquer coisa, da forma mais suja e imediatista possível, o que garante o ritmo frenético do filme.

Portanto, O Massacre da Serra Elétrica é um dos principais filmes de terror que sustenta suas temáticas em panoramas socioculturais, tornando-se uma encarnação do tempo e dos medos inconscientes da cultura da época. No final, conforme o acadêmico Robin Wood, filmes de terror são nossos pesadelos coletivos.

*Sobre o autor: Pedro Vidal é estudante de Cinema e Audiovisual na ESPM, se interessa por cinema, música, literatura e fotografia. Enxerga nos subjetivismos e simbologias da arte um enorme potencial de transformação política e social da sociedade.

Referências:

The Idea of Apocalypse in The Texas Chainsaw Massacre — Christopher Sharrett

https://www.empireonline.com/movies/reviews/empire-essay-texas-chainsaw-massacre-review/

The Texas Chainsaw Massacre: Our Collective Nightmare — Robin Wood

Cannibalistic Capitalism and other American Delicacies: A Bataillean Taste of The Texas ChainSaw Massacre — Naomi Merritt

Recreational Terror Women and the Pleasures of Horror Film Viewing — Isabel Cristina Pinedo

A Taste of Darkness — Rob Ager