Todo diretor é um engenheiro que possui inúmeras ferramentas para trabalhar em sua obra, sendo uma delas o tempo. Ao explorá-lo com criatividade, Richard Linklater criou uma das obras mais originais do romance: a Trilogia Before.
Por Matheus Arroyo*
“Você tem alguma ideia sobre o que eles estão discutindo?”. Foi com essa pergunta a respeito da briga de um casal alemão, a bordo de um trem que pararia em Viena, na Áustria, que se deu início o primeiro diálogo dos personagens que protagonizariam um dos romances mais originais da história do cinema.
Existe uma série de fatores que colaboram para a originalidade da Trilogia Before, como as longas e profundas conversas dos protagonistas ou a elaboração da química entre os mesmos. Porém, aquilo que mais salta aos olhos, é a maneira como o seu diretor, Richard Linklater, explora e constrói o tempo nos três filmes, desafiando as nossas concepções irrealistas sobre o que é o amor.
Em Before Sunrise (1995) — primeiro filme da trilogia — Jesse (Ethan Hawke), um rapaz texano que, na manhã seguinte, pegaria um voo de volta aos Estados Unidos, e Céline (Julie Delpy), uma jovem parisiense que voltava a sua cidade natal após visitar a avó, em Budapeste, se encontram por acaso, conversam e, em uma daquelas decisões do tipo “só se vive uma vez” desembarcam juntos do trem, sem rumo ou destino específico, a fim de vivenciar um pouco da capital austríaca.
Os dois simplesmente andam pela cidade, aproveitando o tempo que possuem juntos até o horário do voo do protagonista norte-americano. Passam por uma ponte, um bondinho, uma loja de discos, um cemitério e com poucos minutos de filme conseguimos perceber o inevitável: ambos estão, de fato, se apaixonando.
Como os protagonistas estão no começo de seus vinte anos, notamos que eles são cheios de sonhos, vontades e idealizações sobre o que seria uma relação amorosa perfeita. O próprio filme, na verdade, pode ser considerado uma idealização. De acordo com Ethan Hawke: “Before Sunrise é o que deveria ser, Before Sunset o que poderia ser e Before Midnight o que realmente é o amor”.
O tempo passa rapidamente, em uma hora e quarenta e cinco minutos acompanhamos os acontecimentos de quase um dia inteiro, com cenas longas, sempre dando destaque aos cenários, que retratam a antiga arquitetura da cidade, e aos diálogos dos personagens.
Inclusive, próximo ao final da história, após termos acompanhado o “tour” do casal por Viena, o qual se transformou em uma experiência romântica inesquecível para ambos, Jesse diz: “Estamos de volta ao tempo real”. Como se tudo aquilo que haviam acabado de experienciar tivesse sido uma espécie de sonho inalcançável, uma outra realidade na qual o tempo passava mais rápido, ao contrário da imperfeita e desinteressante vida real. Em outras palavras: tudo que é bom dura pouco.
O filme possui um final aberto, no qual Jesse e Céline combinam de se reencontrar, seis meses depois, no mesmo local. Mas, será que o plano dos dois realmente foi colocado em prática?
No segundo longa da trilogia — Before Sunset (2004) — descobrimos, nos primeiros minutos, que não. Passados nove anos, tanto na vida real, quanto na cronologia dos filmes, Céline se tornou uma ativista ambiental e continua morando em sua cidade natal. Enquanto Jesse é autor de um livro best-seller, cujo a trama fala sobre os acontecimentos daquele longínquo verão na capital austríaca, o qual está distante apenas nos calendários, pois tudo que aconteceu ainda reverbera no imaginário de ambos os protagonistas.
Em Paris, para a última parada de sua turnê literária, o personagem de Hawke se surpreende ao encontrar Céline em uma livraria, onde participava de uma entrevista coletiva sobre sua obra. Os dois, assim como fizeram em seu primeiro encontro, decidem andar, sem rumo, por outra capital europeia, desta vez a francesa.
Logo nas primeiras tímidas conversas entre os personagens, nos é revelado que ela não foi a Viena na data combinada, pois sua avó havia falecido no mesmo dia, e que, embora tentasse esconder, ele havia cumprido o acordo, porém ninguém encontrou por lá.
Nesse filme, percebemos a influência que a passagem do tempo tem na trama. Não estamos mais assistindo a duas pessoas que acabaram de sair da adolescência. Nossos protagonistas envelheceram, tornaram-se adultos, ganharam bagagem, experiência, histórias para contar e, é claro, novos problemas.
Ele enfrenta as amarras de um casamento infeliz, composto por falta de amor. Já ela se sente insegura por não conseguir manter nenhum de seus relacionamentos por muito tempo. Jesse e Celine, nesse filme, não são um casal e, muito menos aqueles jovens que possuíam ideais amorosos há nove anos. São pessoas que têm problemas justamente relacionados a esse sentimento tão ambíguo.
O tempo de duração e o tempo diegético de Before Sunset também devem ser destacados. Eles têm pouco mais de uma hora para ficarem juntos — Jesse tem que pegar um avião de volta aos EUA — e o longa conta o período todo em tempo real, ou seja, temos a impressão de que os oitenta minutos de filme são equivalentes aos acontecimentos do mesmo. Isso dá um maior grau de realidade à obra, indo em um caminho contrário do tempo “ilusório” de Before Sunrise, comentado anteriormente.
Os dois não conseguem disfarçar a vontade que têm de ficar juntos, e isso é bastante evidente em todos os momentos. Nenhum deles jamais esqueceu a experiência que tiveram nove anos antes. Ele a eternizou e formato de livro, o qual mais tarde, nos é revelado que foi escrito somente como uma tentativa de reencontrá-la, já ela compôs uma música sobre o ocorrido, que é tocada no final do longa.
Finalmente chegamos a Before Midnight (2013), o último — até então — da trilogia. Acompanhamos nossos protagonistas, novamente, nove anos depois de seu reencontro em Paris. Eles ficaram juntos durante todo esse período — Jesse, ao final do filme anterior, desistiu de embarcar em seu voo de volta a sua terra natal. Inclusive o relacionamento resultou em filhas gêmeas, porém jamais se casaram. Dessa vez, não existe a urgência de pegar um avião para algum lugar, ambos estão na Grécia, em um verdadeiro paraíso, de férias.
Jesse e Celine estão com um pouco mais de quarenta anos de idade e apesar de, pela primeira vez, serem oficialmente um casal, passam por uma crise em sua relação. Ele deseja se mudar de volta aos Estados Unidos, pois sente que precisa ficar mais próximo de seu filho Hank, fruto de seu primeiro casamento. Enquanto ela é contrária a essa ideia, porque estaria abrindo mão da vida já estabelecida que possuíam na Europa, por algo que não era nenhuma certeza de sucesso.
Os personagens, mais uma vez, envelheceram, e mais do que isso, o sentimento de amor entre eles também envelheceu. Se por um lado temos uma relação de anos já estabelecida, por outro os problemas relacionados a ela se intensificam. Isso se evidencia ao final do longa, no qual nos é mostrada uma longa e tensa discussão entre os protagonistas — a primeira entre todos os filmes — na qual ela diz que não o ama mais.
O ciclo está, então, completo. Before Sunrise começa exatamente com a briga de um casal e, quase duas décadas depois, em Before Midnight, Jesse e Céline se tornaram exatamente esse casal. A maneira como as obras se complementam através do tempo é o que faz cada uma tão particular.
Não sabemos se, no mundo ficcional da trilogia, nossos protagonistas ainda continuam juntos — esperamos que sim. Entretanto, devemos reconhecer o papel deles em representar, de forma fidedigna e real, o sentimento mais bonito existente: o amor.
Referências:
- https://www.criterion.com/current/posts/4445-the-before-trilogy-time-regained
- https://www.filmcompanion.in/readers-articles/before-movies-series-sunrise-sunset-midnight-how-the-before-trilogy-gave-me-a-new-definition-of-love-richard-linklater-ethan-hawke-julie-delpy/
- https://filmschoolrejects.com/before-trilogy-relationships/
- https://thespool.net/features/fotm/the-daring-ambiguity-of-the-before-trilogy/
- https://www.popmatters.com/the-before-trilogy-criterion-collection-2495389051.html
- https://www.youtube.com/watch?v=i5Eu8IiBDiI