Alucinações e liberdade: por trás do sorriso de Madame Beudet

La Souriante Madame Beudet (1922), de Germaine Dulac, já foi considerado o primeiro filme feminista a ser produzido

Por Paola Orlovas

La Souriante Madame Beudet, ou A Sorridente Madame Beudet, lançado em 1922 e considerado um filme impressionista, foi dirigido por Germaine Dulac (1882–1942), uma diretora pré-surrealista francesa, que entrou para a história com La Coquille et le Clergyman (1927). O filme conta a história do casal burguês Beudet, focando na perspectiva da Madame Beudet, interpretada por Germaine Dermoz (1888–1966).

Ao longo da narrativa acompanhamos o casamento disfuncional e sem amor entre a esposa, que, enquanto encurralada, alucina, e seu marido — um homem altamente narcisista — Monsieur Beudet, que foi interpretado por Alexandre Arquillière (1870–1953). A história, vinda originalmente de uma peça de Denys Amiel (1884–1977), foi adaptada por André Obey (1892–1975), e leva o espectador a acompanhar múltiplas roletas russas feitas por Monsieur, além de sonhos, obsessões e remorsos vindos dos dois lados.

Visto por muitos como o primeiro filme feminista a ser produzido, em grande parte devido ao seu compromisso com o ponto de vista feminino e a escolha de problematizar falas e atitudes machistas, La Souriante Madame Beudet (1922) retrata uma dinâmica de poder clara, onde, por depender financeiramente e até mesmo legalmente de seu marido, Madame Beudet se vê obrigada a permanecer em uma relação desgastante para manter aparências e um certo padrão de vida.

Vale ressaltar a importância dos valores materiais neste cenário, já que se trata de um casal endinheirado de socialites que está vivendo no interior de um país europeu, em uma casa cheia de empregados. Embora Beudet, que ocupa o papel de dona de casa, alucine com seu marido sendo levado para fora de seu escritório por outro homem, ela, de início, não tomaria nenhuma atitude para mudar o cenário em que vivia, algo que acaba mudando depois que ela se recusa a ir para uma exibição de “O Fausto” com Monsieur e um de seus colegas de trabalho.

Para que ocorram as suas alucinações, algo recorrente em filmes impressionistas, que buscam focar em emoções e desejos dos personagens, Madame Beudet utiliza do único recurso que pode lhe trazer uma fuga da realidade, a imaginação. Por meio dela, Beudet pode esquecer, brevemente, das brigas e conflitos que se tornaram costumeiros dentro de seu casamento, e chegar perto de uma realidade que jamais será atingida de fato: a de uma mulher livre e independente.

O filme avança dentro da narrativa, que se passa ao longo de dias, e a insatisfação de Madame Beudet continua aparente, algo que não agrada o marido, um homem que, além de ter falas arrogantes e atitudes agressivas, possui um hábito perigoso de assustar amigos e familiares ao brincar de roleta russa, utilizando de um revólver próprio, não carregado, sempre guardado na gaveta de um móvel em seu escritório, nomeando o ato de uma “paródia do suícidio”.

Certo dia a protagonista, que passa a pensar de forma mais profunda sobre sua relação, está sozinha, e aproveita a oportunidade para pegar a arma do marido, que estava sem balas, como sempre, e carregá-la, para que na próxima vez que ele fizesse a piada da roleta russa, ele realmente estivesse jogando. Ela acaba se arrependendo, mas não consegue retirar os projéteis do revólver antes de Monsieur chegar até ele.

Em meio a uma discussão sobre contas, o homem resolve colocar a arma contra sua cabeça, como era de costume, mas, logo depois, aponta para sua mulher. Pela primeira vez, Monsieur não atira em si, mas sim em outra pessoa: sua tão indesejada esposa. A bala, proveniente do revólver carregado pela própria Madame, acaba não a atingindo, mas poderia tê-la matado.

O filme dirigido por Dulac, então, mostra um ato bravo de uma mulher que, depois de tanto idealizar, tentou fugir de seu casamento sem sucesso. Apesar de seu arrependimento, a atitude de Madame Beudet ainda pode ser enxergada como uma tentativa de fugir da situação em que vivia.

A história de Beudet é uma sátira, mas não deixa de ser, em grande parte, um retrato fiel das relações patriarcais do início do século XX. Dentro de seu matrimônio, que atendia ao modelo burguês da época, não havia espaço para amor ou desejo. O casamento, para a protagonista, era uma prisão e um motivo de frustração, e por isso, o sorriso da Madame era o de uma mulher derrotada.

*Sobre a autora: Paola Orlovas é a idealizadora da Revista Vertovina. Estuda Comunicação Social com habilitação em Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, onde foi bolsista de Iniciação Científica, tendo integrado o Grupo de Pesquisa Comunicação, Cultura e Visualidades. Se interessa por estudos dentro dos campos da Imagem, da Estética e da História da Cultura, com foco em vanguardas artísticas do século XX, fotografia, Europa e União Soviética.

Referências:

POPOVA, Maria. The First Feminist Film (1922). The Marginalian, Nova Iorque, Estados Unidos, 2012.