Mais que qualquer outra coisa, ‘Através do Fluxo’ dá continuidade a uma obra
Felipe Palmieri
Algo que chama a atenção na obra do cineasta sul-coreano Hong Sang-soo é a crença no próprio método. Uma crença artesanal, que espelha algo de Yasujiro Ozu na recorrência de panoramas sempre semelhantes, com sutis alterações de abordagem aqui e ali. A especificidade de seu novo trabalho, Através do Fluxo — filme que perpetua a presença anual do cineasta na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo —, além de ser seu filme de maior duração em quase dez anos, está no fato de refletir essa noção generalizada de repetição em si mesmo. A aposta na repetição de atores, de situações, de conflitos e de locais é uma decisão a ser tomada constantemente, mas o ato de apostar na repetição é o âmago de Através do Fluxo.
Mas antes, falemos sobre aquilo que une este filme aos seus predecessores. Não há uma grande virada estética que diferencie este trabalho de outros, como era o caso de In Water, do ano passado, ou um tema específico que destoe de outras obras do diretor. Mais que qualquer outra coisa, Através do Fluxo dá continuidade a uma obra. Novamente, Sang-soo trabalha com sua estética mínima, sem grande valor de produção aparente, com aspectos técnicos de fotografia e captação sonora o mais direto e simples possíveis. No entanto, como de costume, é aí que residem as brechas para que sua poesia se revele.
E aqui há um caso mágico de quando tudo funciona dentro dos sistemas usuais do diretor. Ao permitir a existência dos personagens de Através do Fluxo em constante comunicação, com uma vivacidade interior tão tangível, a presença imanente da tela se torna em algo tão real quanto o mundo à nossa volta. Esse apoio no verbo, das situações se embasarem na capacidade de conversa entre personagens, é uma virtude frequente na obra do diretor, mas que aqui ganha uma dimensão especial.
Acompanha-se, como em muitos outros filmes de Sang-soo, uma situação de reencontro. Tio e sobrinha que há muito não tinham contato, mas que por conta de uma oportunidade profissional acabam cruzando o caminho um do outro mais uma vez. O interesse do cineasta por reencontros manifesta em si uma potência que é também a razão pela qual Sang-soo é tão interessado na repetição: a ressignificação.
O que uma relação há muito tempo esquecida pode significar ao ser retomada? Como as mudanças das vidas de cada um, que seguem seu próprio fluxo, podem influenciar na significação de uma confluência arbitrária?
É uma perspectiva que vai muito além da tradicional noção de encanto na rotina, de abraçar a repetição cotidiana como algo mágico por si só. A abordagem de Através do Fluxo tem como enfoque justamente aquilo que é diferente, demonstrando a passagem do tempo a partir das mesmas molduras mas enfatizando as mudanças — de forma que o cotidiano se torne frágil, que tenha na própria repetição a receita para ser quebrado. A lua aparece de novo e de novo, mas sempre em fases diferentes. A imagem da personagem de Kim Min-hee à beira do córrego, desenhando-o, também é recorrente, mas nunca a água está no mesmo nível ou a personagem no mesmo lugar. Esse tipo de repetição permite que a beleza seja vista de forma natural, como se surgisse sozinha ao invés de ser mostrada.
Em uma cena das mais marcantes da carreira recente do diretor, quatro jovens estudantes, que acabam de atuar em uma peça muito mal recebida, são perguntadas pelo protagonista do filme: “O que vocês querem ser?”. E permite-se que cada uma das jovens dê sua própria resposta, extensa ou curta, tocante ou engraçada, sem julgamentos. É nessa conexão inesperada e genuína, entre um diretor de teatro e quatro estudantes universitárias bebendo e comendo juntos, que a capacidade humana de encontrar sentido na coexistência aflora em tela.
A sensação de pertencimento é ainda mais forte por termos lapsos de uma vida pregressa de exclusão — que em muito reflete a experiência pessoal de Hong Sang-soo e Kim Min-Hee, como artistas renegados no próprio país. Acaba sendo um manifesto em prol de se colocar no mundo como artista, com seu esforço e sua visão, independente da recepção pública.
Através do Fluxo é, inclusive, um nome que bem descreve a relação entre as obras de Sang-soo e seus espectadores, pois assistir à um filme dele se parece com a experiência de passar por um mesmo fluxo, como na metáfora do rio de Heráclito, que apesar de familiar, nunca é a mesma coisa.