Berlim e São Paulo: o que dizem as sinfonias das metrópoles?

No começo do século XX, as cidades de Berlim e de São Paulo foram homenageadas com filmes que buscaram retratar a rotina das cidades. ‘São Paulo — Sinfonia de uma Metrópole’ foi inspirado em ‘Berlim — Sinfonia de uma Metrópole’, mas apesar do conceito de ambos ser o mesmo, seus recursos e mensagens são diferentes.

Por Íris Chadi*

Na década de 1920, as grandes cidades pelo mundo se urbanizavam. Simultaneamente, o cinema também evoluía progressivamente e novas possibilidades eram constantemente descobertas por cineastas inovadores.

Neste movimento de modernização, surgiram diversos filmes que se propunham a falar sobre as cidades. Nova York, Lisboa, Amsterdã, Paris e Kiev foram algumas das homenageadas com documentários que observavam a vida dessas cidades em constante transformação.

Dois desses documentários chamam a atenção por suas similaridades: Berlim — Sinfonia de uma Metrópole (1927, Walter Ruttmann) e São Paulo — Sinfonia de uma Metrópole (1929, Adalberto Kemeny, Rodolfo Lustig). Não apenas os nomes são parecidos, mas toda a estrutura de ‘São Paulo’ foi inspirada na de ‘Berlim’. Ambos buscam representar um dia nessas cidades de grandes transformações sociais, porém cada filme apresenta uma abordagem diferente e revela visões distintas sobre suas metrópoles.

BERLIM — UM DOCUMENTÁRIO DE OBSERVAÇÃO

Após a Primeira Guerra Mundial, Berlim virou um polo de industrialização, tendo se tornado, na metade da década de 1920, a cidade mais industrializada da Europa. Nesta nova realidade de urbanização, Walter Ruttmann trabalha em seu filme ‘Berlim’ a nova rotina desta cidade efervescente.

Para representar um dia na capital alemã, Ruttmann fez um documentário a partir do método de observação. Ele deixou o dia transcorrer diante de sua câmera que, em muitos momentos, ficou escondida, para captar o comportamento natural das pessoas.

Assim, observamos a cidade. O filme não tem um protagonista único, ele é impessoal: a massa populacional de Berlim. Ao longo da obra, o espectador vê diversos setores sociais atuando como uma engrenagem e compreende que são necessários todos os trabalhadores para um pleno funcionamento da cidade. ‘Berlim — Sinfonia de uma Metrópole’ põe em perspectiva a diversa mão de obra e sua importância para a sociedade.

Apenas observando a realidade e sem um protagonista único, como Ruttmann construiu uma narrativa interessante e significativa? Sem recorrer a intertítulos explicativos (e nem de nenhum tipo de locução, afinal o filme é mudo), o diretor faz bom uso da montagem para articular as imagens de forma ritmada e harmônica.

A justaposição de planos cria os sentidos do filme. Por ela, o espectador depreende a passagem do dia, entende os acontecimentos e se envolve, de fato, com a cidade. Representando os momentos do dia com metonímias de ações de grupos específicos, o longa permite que o espectador depreenda o decorrer da história.

Vemos ruas vazias e, em seguida, uma padaria começando as atividades: entendemos que ainda é manhãzinha, todos dormem, menos o padeiro. É uma construção sintética e que dá margem para que o espectador racionalize sobre o que vê. Por conta disso, é fácil se interessar e se conectar com esta história, mesmo que ela não tenha um enredo clássico.

Porém a montagem também apresenta, em ‘Berlim’, uma segunda camada de importância: ela induz significados que ficam nas entrelinhas da história. Ruttmann faz uso de uma técnica chamada ‘Montagem Intelectual’, termo desenvolvido pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein. Na montagem intelectual, são justapostos dois planos, cada um com um significado por si, mas que, juntos, apresentam um outro significado, que é implícito e deve ser formado na interpretação do espectador.

Vamos entender como esta ferramenta se manifesta em ‘Berlim’:

Ao longo do filme, as fábricas de Berlim ocupam uma posição grandiosa no quadro. Todo o documentário é centrado na modernização e no ritmo frenético da cidade e por conta disso, ele poderia ser interpretado como uma ode à hiper-urbanização. Porém algumas sequências de planos dão a entender que Ruttmann faz, na verdade, uma crítica a este modo de vida.

Frequentemente, o diretor justapõe planos de pessoas realizando atividades diárias a planos de animais fazendo a mesma ação. Por exemplo, no terceiro ato de ‘Berlim’, é o horário de almoço dos trabalhadores. Vemos pessoas almoçando e, em seguida, animais enjaulados sendo alimentados. Outros momentos também revelam o mesmo paralelismo: pessoas correndo pela cidade para chegar em seus destinos e cavalos também desenfreados, indo a algum lugar, mas sem ter consciência de sua ação.

O plano de um menino comendo é seguido da imagem de um macaco se alimentando da mesma forma. 1927, Walter Ruttmann. Berlin — Die Sinfonie der Großstadt

Com essa simples articulação de planos, Ruttmann mostra como, nas cidades hiper modernas, humanos se comportam como animais: sem consciência e enjaulados dentro de uma rotina a qual estão apenas submetidos, sem poder controlar.

Apesar de ser um documentário majoritariamente observador, há uma sequência em ‘Berlim’ que exige atenção e reforça a crítica do diretor. Na época em que foi gravado, documentários podiam contar com algumas encenações. E há, em ‘Berlim’, uma cena encenada: a do suicídio.

Nela, uma mulher encara um rio, querendo se lançar nele, e pessoas param para olhar o que ocorre, mas ninguém a ajuda. Então, a mulher se joga, morre e os transeuntes apenas seguem com o fluxo de sua vida, sem se importar. Esta cena reforça a impessoalidade do filme: todos somos apenas um parafuso na engrenagem urbana, podendo, facilmente, ser substituídos.

Mesmo com esta cena, ‘Berlim’ não deixa de ser um documentário observativo que constrói seu discurso sobre a cidade a partir da observação. Ou seja, primeiro Ruttmann precisou ver e filmar a cidade, para depois montar o filme passando uma mensagem.

SÃO PAULO — UM DOCUMENTÁRIO EXPOSITIVO

Foi também durante os anos 1920 que São Paulo começou um intenso processo de urbanização. Fábricas e indústrias se multiplicavam pela cidade, enquanto os filhos da elite paulistana foram estudar e visitar a Europa. Ao voltar, estavam inspirados.

A capital paulista começou a se desenvolver aos moldes europeus. Espaços como o Theatro Municipal e o Viaduto do Chá foram construídos, com base na arquitetura europeia.

As classes altas queriam se sentir na Europa. Mas não só: queriam também vender uma imagem de São Paulo para o resto do planeta. Uma imagem positivista de que a cidade é a ‘locomotiva do Brasil’, amparada no progresso, na modernização, no desenvolvimento e no trabalho incansável. Queriam deixar de lado a imagem colonial de São Paulo e substituí-la por uma imagem urbana.

Foi neste contexto que ‘São Paulo — Sinfonia de uma Metrópole’ foi realizado. Os diretores do filme, Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig eram húngaros e tinham, no Brasil, um renomado laboratório de cinema. Inspirados por ‘Berlim’, fizeram seu próprio filme, apresentando, também, um dia em sua cidade-tema. Porém, ao invés de tomarem uma atitude mais observadora, como fez Ruttmann, Kemeny e Lustig optaram por uma abordagem expositiva.

O intuito de ‘São Paulo’ era vender uma imagem específica da cidade. Não foi construído um discurso a partir da captação documental, mas, sim, o documentário foi construído em cima de um discurso pré-definido. E isso pode ser observado em algumas ferramentas narrativas do filme.

Assim como em ‘Berlim’, não há, aqui, um protagonista único. O protagonista continua sendo as pessoas da cidade. Porém, enquanto no filme alemão não havia um aprofundamento em cada setor, aqui a obra se debruça sobre algumas instituições de São Paulo, para bajulá-las, como a penitenciária, que é retratada como um excelente ambiente de ‘regeneração’ dos presos. Estes locais que o filme dá atenção patrocinaram a obra e foram representados de forma cautelosa, para passar a mensagem de que eles contribuem para o progresso e modernização da cidade.

Além disso, outro ponto reforça o discurso pré-definido da obra, na contramão de ‘Berlim’: o uso desenfreado de intertítulos, que impõem significados às imagens. Quase não é permitido que as figuras digam algo por si só: elas servem, primordialmente, de ferramentas expositivas, ou seja, apenas expõem o que é dito nos intertítulos. Assim, o espectador entende a história pelo que é escrito, não pelo que é mostrado, sem poder refletir sobre as imagens. A mensagem do filme é imposta pela palavra.

O filme começa com este intertítulo, que já apresenta o tom e a mensagem da obra. 1929, Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig. São Paulo — Sinfonia de uma Metrópole

A todo momento somos bombardeados de intertítulos que reafirmam a ideia de que São Paulo é uma cidade rica e desenvolvida. E as imagens são cuidadosamente selecionadas para confirmar essa ideia, deixando de lado partes da metrópole que mostrariam a pobreza.

Além do esvaziamento das imagens, a montagem, em ‘São Paulo’, também é um tanto vazia, por ser técnica. Ela não serve para fazer avançar uma narrativa, nem para atribuir sentido às imagens e muito menos para construir o ritmo do filme. Ela faz um trabalho puramente mecânico, de juntar planos sem a criação de um fio condutor. Afinal, o intuito aqui não é contar uma história, mas, sim, fazer uma propaganda do progresso paulistano.

Mas isso não significa que o ‘São Paulo — Sinfonia de uma Metrópole’ não sirva de registro histórico. Mesmo não mostrando a realidade completa, ele é uma representação absoluta da imagem que São Paulo queria construir de si mesma. Para entender a evolução da cidade, o filme de Kemeny e Lustig é essencial.

REVERBERAM AS SINFONIAS

Ambos os filmes são de grande importância para a história do cinema e são considerados registros fundamentais de Berlim e de São Paulo na década de 1920. O que é importante ter em mente é que tipo de registro essas obras de fato oferecem.

Por mais que ‘São Paulo’ seja mais assertivo em seu discurso, ‘Berlim’ também nos apresenta a visão do cineasta que o realizou. E, novamente, isto não é um problema, pelo contrário, é a maior contribuição destas obras: nos oferecer meios de compreender a visão dos artistas, seus intuitos, a realidade na qual estavam inseridos e o que tudo isso nos diz sobre a fração das cidades que pode ser representadas nos filmes.

*Sobre a autora: Íris Chadi é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, cineasta independente e roteirista de profissão. No cinema, seus principais interesses se concentram no surrealismo, no medo e em novas formas de se pensar e fazer a sétima arte.

REFERÊNCIAS

Filmheft für den DaF-Unterricht — Pädagogische Hochschule Freiburg

https://www.bpb.de/geschichte/zeitgeschichte/sound-des-jahrhunderts/210144/sinfonie-der-grossstadt

https://naosaoasimagens.wordpress.com/2015/07/08/sao-paulo-sinfonia-da-metropole-1929/

MARSON, Michel Deliberali. A industrialização brasileira antes de 1930: uma contribuição sobre a evolução da indústria de máquinas e equipamentos no estado de São Paulo, 1900–1920. São Paulo: 2015

PROENÇA, Caio de Carvalho. São Paulo na década de 1920: A construção de uma cidade para as elites. Campinas: 2012

Orfeu extático na Metrópole — Nicolau Sevcenko, 2009.