Casting Couch: o horror de ser mulher em Hollywood

Um ensaio sobre Mulholland Drive (2001) de David Lynch e o terror feminino do sonho hollywoodiano.

Laura Redfern Navarro*

Que David Lynch consegue mexer estruturas e criar labirintos a partir de pequenos simbolismos dos lugares comuns, sabemos. Há quem diga que todos os seus filmes trazem uma mesma narrativa, que se foca na derrocada — e no sacrifício — feminino, protagonizado por mulheres-promessa: quase sempre louras, talentosas e com uma aura de mistério que as assola até que nós, ingênuos, realmente percebamos.

O que classificaria um filme como sendo um filme de horror senão o seu caráter sombrio, esse que explora as vicissitudes daquilo que é feio, vil e imoral? Afinal, conhecemos tais filmes como aqueles que trazem monstros, casas mal-assombradas, fantasmas — tudo aquilo que, se olharmos de perto, integra os nossos próprios escombros humanos, o medo, a crueldade e até um certo fascínio por eles. O bom filme de terror é aquele que nos fisga por perto, que atinge nosso interior, que evitamos nos apegar. É possível entender a construção desses objetos artísticos, ainda, como forma de alavancar discussões e, por fim, transformação social.

No caso do horror feminino, o caráter sombrio se delineia ainda mais por nos exibir as facetas de mulheres que não se enquadram na norma, sejam elas assassinas, femme fatales ou monstras de fato. É preciso, porém, resguardar um olhar crítico a essas narrativas. Na história da Medusa, por exemplo, somos lembrados da mulher com cabelos de cobra que transforma quem se aproximar em pedra, embora nos esqueçamos dessa figura enquanto vítima de violência sexual.

Essa premissa da criticidade, fundada na repartição de facetas, se parece muito com as histórias de David Lynch, ainda que não estejam classificadas como “terror” ou “horror”. Isso certamente se aplica ao filme Mulholland Drive (2001), cujo enredo nos fisga e nos assombra não pelo espetáculo da monstruosidade, mas pelo horror que se coloca nas entrelinhas — carregado como um peso por suas personagens femininas.

MULHOLLAND DRIVE (2001) — UMA HISTÓRIA DE FRACASSOS

Temos como protagonista a loura e ingênua Betty Holmes (Naomi Watts) que resolve empreender uma carreira como atriz em Hollywood. Uma história manjada, de fato, mas que não se sustenta na promessa de um final feliz. Afinal, ela opta também pela narrativa de “ajudar” uma estranha muito sedutora de cabelos escuros, que se autodenomina “Rita” (Laura Harring), após ter perdido a memória num acidente automobilístico. Enquanto isso tudo acontece, um diretor frustrado (Justin Theroux) é obrigado pela máfia a escolher uma misteriosa atriz de nome “Camilla Rhodes” (Melissa George) para compor o elenco de seu filme.

Esse entrecruzamento de narrativas, alavancado por todo o arcabouço simbólico próprio de David Lynch, cria uma atmosfera de sonho para essas histórias, que leva ao estranhamento. Em um primeiro momento, há uma cena, logo que Betty encontra Rita em seu apartamento, em que a locatária (Ann Miller) e uma moradora (Lee Grant) alertam a loura de que “há algo muito ruim acontecendo”. De início, ficamos sem entender essa cena, mas o estranhamento se mantém quase que direcionado por ela. Mais para frente, o filme traz cenas que abarcam — de maneira perturbadora — a temática da violência sexual.

Prova disso é a primeira audição de Betty, em que ela contracena com um homem muito mais velho do que ela e exibe um comportamento erotizado e particularmente desconfortável. Além disso, a aparição — e a escolha — da atriz Camilla Rhodes para a estréia do filme também soa como a escolha de uma presa ou de uma prostituta, notadamente pela fala “this is the girl”.

E o que tudo isso tem a ver com o horror no filme?

Ao longo da incursão, começamos a perceber que o ideal de Betty com Hollywood vai perdendo o brilho junto com a aproximação da descoberta da identidade de Rita e seus desdobramentos. Mulholland Drive passa, então, a explorar cenários típicos dessa Los Angeles decadente e corrupta: há um encontro sexual entre as duas mulheres e tudo desmorona de vez quando elas resolvem ir a uma boate antiga, de nome Club Silêncio, onde são alertadas numa apresentação perturbadora de que tudo não passa de uma ilusão.

Descobrimos, então, que Rita na verdade se chama Camilla Rhodes (tal como a atriz) e é, na verdade, uma femme fatale clássica: mentirosa, corrupta e abusiva para com sua parceira, que não se chama Betty e, sim, Diane Selwyn. Diane, antes bela e gloriosa, agora parece estar à beira de um colapso emocional. Então, há um encontro decisivo: um jantar de gala que exalta a promiscuidade de Camilla como garantia de seu sucesso, tendo inclusive o diretor frustrado, Adam Kesher, como parceiro, e a frustração progressiva de Diane.

Vale ressaltar que, em uma das cenas seguintes, vemos Diane tentando se masturbar sem sucesso, em pranto e com o olhar endiabrado. Todos esses episódios, cada vez mais violentos (e com uma natureza muito sexual, ainda que não explícita) passam a sufocar a protagonista que, por fim, opta por contratar um matador de aluguel para assassinar sua parceira e, ao ter êxito, comete suicídio.

O HORROR HOLLYWOODIANO: A PRÁTICA DO CASTING COUCH

A partir de todas essas alegorias, consigo analisar o filme sobre a ótica de uma denúncia, que coloca o sucesso em Hollywood emparelhado a uma sexualidade aberrante e destrutiva. E o que seria a natureza perversa da sexualidade, principalmente se pensarmos a condição feminina, senão a coercitividade e a falta de agência?

De acordo com o vídeo-análise do canal Twin Perfect sobre Mulholland Drive, o filme parece se direcionar em torno do chamado casting couch, que nada mais é do que a troca de favores sexuais em prol do sucesso, sendo assim uma prática que explora mulheres dentro do setor. Lembremos que, ao longo do filme, somos levados à conclusão de que Camilla Rhodes só seria uma atriz requisitada por estar dentro dessa lógica.

O fenômeno do casting couch seria, assim, a “coisa ruim” que estaria sendo alertada a Diane no início do filme. Vale ressaltar que, nos últimos anos, vem aumentando o número de denúncias contra práticas do gênero, notadamente no caso que envolve o produtor Harvey Weinstein¹, acusado por inúmeras atrizes, como Angelina Jolie e Cara Delevigne, de assédio e abuso sexual.

Pensando as interlocuções subjetivas tratadas por Lynch, entendemos que o horror de Diane se volta justamente ao perceber que sua ilusão é fruto de um trauma: o trauma da condição feminina sob a aspiração do sucesso, uma trama fundada na regulação dos corpos femininos e na performance da subalternidade feminina, em que nenhuma mulher realmente se encaixa sem ser fraturada de alguma forma. Nesse caso, ainda, há uma impossibilidade de denúncia, tendo-se em vista de que tal prática é oferecida falsamente como uma “escolha” para alavancar o sucesso.

Em decorrência desse conflito, vemos Diane insurgir como uma monstra, uma louca, uma mulher raivosa. Não é por acaso que ela esteja catalogada na “Villains Wiki” como principal vilã do filme². Por outro lado, Rita (ou Camilla) é sempre sedutora — seja na sua ingenuidade, seja na sua corrupção.

Essas duas mulheres, na realidade, podem ser lidas como partes da mesma, todas essas facetas da fragmentação pelo abuso sexual³. Não é raro que mulheres abusadas se convençam de que não há nada de errado e se mostrem codependentes, ingênuas e boazinhas para lidar com a situação — caso de Betty, que nos causa estranhamento pela sua bondade excessiva.

Nesta faceta, porém, ela não é monstruosa justamente porque coopera com os interesses externos. Esse é o caso de Rita, também, que se mostra atraente principalmente na sua vulnerabilidade — trata-se de uma mulher ingênua e submissa, que coopera por falta de perspectiva. Afinal de contas, a ruptura da memória se faz como uma defesa própria da vivência traumática, destacando-se aqui seu desdobramento enquanto falta de consciência do ambiente.

Porém, ao exibir justamente a característica mais sombria de sua carreira, ambas as mulheres passam a desnudar seus escombros. Camilla Rhodes é sedutora, mas em sua corrupção, em sua violência, em sua manipulação, como se adaptasse à realidade em que vive. Ao mesmo tempo, seu comportamento é repugnante por ressaltar a sua suposta promiscuidade e falta de honestidade, característica de muitas vilãs do audiovisual. Ou seja, ela responde positivamente ao ambiente — dominado pela demanda masculina — sendo sua perversidade a reprodução dele.

Por outro lado, a monstruosidade de Diane é a própria ferida: vemos uma mulher estilhaçada, instável, e, principalmente, desgrenhada, com uma aparência cansada e nem um pouco glamourosa. Ressalto principalmente a sua estética nesse constructo, que dá corpo a nossa construção social em torno da monstruosidade feminina. Afinal, para além da inconstância, concebemos o desleixo de Diane como “falta de postura” em sua narrativa, bem como no caso da Medusa, citada no início do texto.

Por isso, pode-se dizer que Mulholland Drive é um filme que trata, principalmente, do horror psicológico capturado nas mulheres iludidas pelo sonho de Hollywood, principalmente ao nos oferecer o questionamento acerca do que faz uma vilã numa percepção fragmentária, nos elencando, de maneira crítica e provocatória, o horror que antecipa essas construções.

*Sobre a autora: Laura Redfern Navarro (2000) é poeta, jornalista e comunicadora cultural. Interessa-se pelos atravessamentos do corpo, do feminino e do estranhamento. Estuda jornalismo na Faculdade Cásper Líbero (FCL). Laura é editora a revista literária Ano II: Ensaio, participa da equipe de poetas da FaziaPoesia e mantém a plataforma independente @matryoshkabooks, voltada à divulgação de literatura brasileira contemporânea.

Referências:

¹https://www.bbc.com/portuguese/geral-51553491

²https://villains.fandom.com/wiki/Diane_Selwyn

³ Podcast Mulheres que Escrevem #49 — Brena O’Dwyer em mulheres que escrevem a poesia contemporânea: Taís Bravo. Rio de Janeiro. Mulheres que Escrevem. Setembro de 2020. Podcast. Disponível em: ​​https://open.spotify.com/episode/65ocguGadkn4nFzAyZBW5i Data de acesso: 12 set. 2021