Em entrevista, Wallace Andrioli fala um pouco sobre as relações da ditadura militar com o cinema brasileiro
Por Pedro Vidal
Não é de hoje que o cinema brasileiro vem passando por maus bocados, o descaso com a nossa memória cinematográfica, culminado pelo incêndio da Cinemateca Brasileira, é só uma perpetuação do que já acontecia na ditadura de 64. Em meio a tamanha negligência governamental, algumas organizações ainda lutam por uma luz, como mostra Carolina Azevedo em seu texto para a primeira edição da Revista Vertovina, disponível aqui. Entender o processo histórico pelo qual o cinema brasileiro passou é fundamental para buscar soluções nesse cenário.
Em entrevista com a Vertovina, Wallace Andrioli mostra que as questões do cinema brasileiro com a ditadura militar não eram tão simples e superficiais assim. Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre e doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UFJF, Wallace estuda as principais questões do cinema brasileiro na ditadura.
Pedro Vidal: Para quebrar o gelo, qual seu cineasta brasileiro preferido e por que?
Wallace Andrioli: Vou falar dois. O Eduardo Coutinho pelo peso que o cinema dele tem pro cinema documentário, eu nem sou propriamente um especialista sobre cinema documentário, mas o tipo de documentário que o Coutinho fez ao longo de sua trajetória, para mim tem um peso muito especial. Acho que é um olhar muito particular e muito instigante pro cinema documentário e para a forma de lidar com a realidade também. Fora que alguns dos filmes dele, como Cabra Marcado Pra Morrer, estão dentre os meus favoritos da história do cinema brasileiro, é um dos filmes mais significativos já feitos aqui. E acho que um segundo diretor seria o Nelson Pereira dos Santos, um diretor que também tem um peso muito grande na história do cinema brasileiro e que tem uma trajetória que atravessa algumas décadas. O cinema dele vai mudando e vai dialogando com novas características do cinema moderno brasileiro. Ele parte de uma adaptação do estilo neorrealista pra realidade brasileira nos anos 50, depois estabelece pontes com o Cinema Novo nos anos 60 e nos anos 70 vai repensar, principalmente a partir do Amuleto de Ogum, essa relação entre o cineasta e as classes populares de uma forma muito criativa e enriquecedora. Então acho que são esses dois, nomes muito icônicos da história do cinema brasileiro que são um pouco inescapáveis. É claro que gosto muito de outros também, gosto muito do Glauber, do Joaquim Pedro de Andrade, do Rogério Sganzerla, do Júlio Bressane, mas se eu tivesse que escolher entre um ou dois seriam o Coutinho e o Nelson.
Pedro Vidal: Como o golpe de 64 afetou a indústria cinematográfica? O nosso cinema era próspero antes do golpe?
Wallace Andrioli: Acho que próspero é uma palavra forte. O cinema brasileiro, historicamente, teve muitas dificuldades para se viabilizar enquanto meio de produção, sempre foi muito difícil fazer cinema no Brasil. Quando começa a se pensar o cinema brasileiro numa lógica industrial a partir do final dos anos 40 aos anos 50, são experiências que acabam fracassando de forma bastante espetaculosa, são fracassos monumentais, como foi a Vera Cruz. O impacto do golpe de 64 ocorreu muito sobre um tipo específico de cinema que estava sendo feito no Brasil, um cinema moderno que naquele momento encarnava muito no Cinema Novo. Sobretudo, porque o Cinema Novo tinha uma série de vinculações com setores da política e da produção cultural brasileira que naquele momento vão ser visados pelo golpe. Vão ser inicialmente perseguidos, como o próprio Cabra Marcado Pra Morrer, um filme que nasce como um projeto ligado ao Centro Popular de Cultura da UNE — que era um desses espaços que tinha um diálogo com o Cinema Novo e com o cinema moderno feito no Brasil no início dos anos 60 — e que vai ser interrompido pelo golpe de 64. No imediato pós-golpe, a gente tem alguns filmes que vão tentar de alguma forma refletir sobre o impacto desse acontecimento no meio intelectual de esquerda, pelo qual esses cineastas do Cinema Novo circulavam. Nesse espaço, vão ser feitos filmes que buscavam refletir sobre uma série de questões da sociedade brasileira, dentro de uma perspectiva revolucionária e transformadora. Isso vai ser mal visto pelas forças militares que deram o golpe e que vão instituir a ditadura a partir de 64. Mas agora, se a gente for pensar no âmbito propriamente da produção, dá pra se dizer que esse impacto é mais relativo. Como eu disse, o cinema brasileiro já tinha muitas dificuldades e no pós-golpe vão ser criadas, por exemplo no estado da Guanabara — atual estado do Rio de Janeiro, época em que o estado do Rio de Janeiro era dividido em dois, o estado do Rio e o estado da Guanabara — governado pelo Carlos Lacerda na época, políticas de financiamento do cinema. No próprio âmbito do governo federal, a partir do final dos anos 60 e principalmente ao longo dos anos 70 com o fortalecimento da Embrafilme, a gente tem essa situação paradoxal de uma ditadura de direita que estabelece conexões com cineastas com visões de mundo progressistas e ideais de esquerda. É claro que existe o âmbito da censura, que tem um efeito perverso sobre o cinema, assim como sobre outras formas de manifestação artística. Também vale dizer que a censura às artes não é uma criação da ditadura de 64, na verdade, ela já existe desde o início do século XX, vai passar por uma série de mutações ao longo das décadas e vai ter algumas mudanças feitas pela ditadura militar. Mas sim, a censura vai se tornar mais forte, com uma atuação mais centralizada e sistemática sobre produções que, sobretudo, atinjam os valores do governo. Então, esse é um impacto que o cinema brasileiro vai sofrer de maneira mais intensa, principalmente após 68 com o AI-5, com uma repressão mais forte ao campo cultural. Eu, como pesquisador desse assunto, acho interessante a gente também buscar entender que existem complexidades nessa relação entre o Estado ditatorial e o campo cultural. Existem continuidades entre o período pré-golpe e o período pós-golpe, as coisas não são simplesmente interrompidas e reiniciadas do zero novamente.
Pedro Vidal: Qual era a maneira mais usual dos cineastas driblarem a censura? Você pode dar o exemplo de algum filme?
Wallace Andrioli: Existe todo um anedotário sobre essa relação das artes, não só do cinema, com a censura ao longo da ditadura militar, dessas estratégias que foram adotadas pelos artistas para que de alguma forma conseguissem passar suas obras por ela. Eu acho que esse tipo de leitura — que de certa forma carrega uma visão da censura que não é de todo condizente com o que ela de fato representava na sociedade brasileira naquele momento — tem um olhar muito maniqueísta, que não percebe que ela era algo relativamente normalizado e aceito por parcelas da sociedade brasileira. Os censores não eram necessariamente burros e estúpidos o tempo todo, muitos artistas disseminaram essa visão ao longo do tempo, construíram essa mitologia em torno disso. Mas, de toda forma, eu acho que a gente pode pensar em alguns exemplos dentro do cinema que conseguiram escapar de um certo rigor da censura, que estava previamente estabelecido pela legislação utilizada pelas normas da atuação censória, que estabelecia o que deveria ser proibido e o que poderia ser permitido. Então, por exemplo, o caso do Terra em Transe do Glauber — um filme de 67, em um momento em que a censura ainda tinha uma flexibilidade um pouco maior — é interessante por como esse tipo de relação se estabelecia entre o artista e os produtores, e a censura. Inicialmente, o Terra em Transe foi defendido que fosse proibido, justamente por conhecerem os pensamentos políticos do Glauber e perceberem no filme um discurso político muito incisivo contra o golpe e as forças reacionárias da sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo, existiu uma percepção por parte dos censores de um estilo muito hermético e árido para um público em geral, que no fim das contas nem valeria a pena proibir o filme, porque ele não seria entendido pela maioria da população. Então, os censores deixam o filme passar, porque as pessoas vão achar ele chato e não vão entender totalmente essa mensagem revolucionária e fortemente crítica que o ele propunha. Há uma negociação entre produtores e censores, e a única alteração que é feita no filme é que nos créditos finais, na lista de personagens, o padre recebe um nome, pois poderia ser visto como uma encarnação da totalidade da Igreja Católica. A exigência é que o filme nomeie aquele personagem para individualizá-lo, para que ele não representasse a instituição da Igreja como um todo. Outro caso, que também é bem interessante é Os Inconfidentes do Joaquim Pedro de Andrade, no início dos anos 70. É um filme que consegue uma parte dos seus recursos pelo financiamento do Estado Brasileiro, num momento em que era incentivado a produção de filmes históricos sobre grandes personagens da história brasileira e grandes eventos do passado, bem naquela perspectiva ufanista das propagandas da ditadura militar. Só que o Joaquim Pedro vai pegar esse financiamento e vai fazer um filme que é o inverso disso. Ele faz um filme bastante crítico, com um estilo muito próprio do Cinema Novo, bem alegórico e melancólico, com uma narrativa que caminha muito lentamente, interpretações pouco naturalistas, que carregam uma série de críticas políticas. Mas, o filme estava de alguma forma protegido por aquela capa de filme histórico, como ele se baseava nos Autos da Devassa — a documentação histórica do processo dos inconfidentes — e no livro da Cecília Meireles, o Romanceiro da Inconfidência. O filme consegue passar impune pela censura, porque a mensagem política dele estava de alguma forma protegida por essa fidelidade histórica, que os censores não têm como negar. Mas, ao mesmo tempo, ele é um filme radicalmente diferente do que a ditadura militar esperava naquele momento de um filme histórico ufanista e nacionalista. Ele não é feito para exaltar o herói Tiradentes, como esse símbolo de luta pela independência brasileira, pelo contrário, é um filme bastante crítico a todo esse processo da inconfidência, não há heróis propriamente nesse filme, mas ele consegue escapar da censura dessa forma. Essa lógica da negociação vai existir sempre, porque interessa aos diretores e aos produtores que os filmes sejam liberados e exibidos para que recebam algum retorno financeiro, porque fazer cinema é muito caro. Mesmo quando barato é caro. E, sobretudo, se a gente for pensar num cinema que não era e ainda não é industrial, a censura sempre vai determinar cortes ou proibições, os produtores vão tentar negociar cortar uma cena aqui outra ali, redublar uma cena aqui outra ali para que o filme possa ser liberado e estrear no cinema. Um outro caso é do filme Essa Noite Encarnarei no teu Cadáver do Zé Mojica Marins de 67. Um filme que é muito mal visto pelos censores, visto como um filme de degradação humana, com uma mensagem muito negativa, e na negociação entre a censura e os produtores do filme, chega-se a um acordo de redublar o personagem do Zé do Caixão na última cena do filme. Assim, o filme terminaria com uma mensagem minimamente positiva, dele se convertendo ali nos últimos instantes da sua vida, e se arrependendo de tudo o que fez, algo que é incoerente com a trajetória do personagem. Mas, de toda forma, é uma solução encontrada nessas negociações para que o filme não fosse proibido, porque obviamente, se o fosse geraria um prejuízo muito grande para os seus produtores.
Carolina Azevedo: Ao contrário disso que você disse de Terra em Transe, que não iria agradar o público e por isso não foi censurado tão fortemente, outros filmes políticos usaram de certas técnicas para atrair o público e, ao mesmo tempo, distrair a censura, como os filmes do Mojica e Reichenbach. Você pode falar um pouco sobre isso?
Wallace Andrioli: Sim, esses filmes tinham um apelo comercial bem maior, principalmente a pornochanchada. Mas, também acho que isso tem fases, essa relação do cinema popular com a censura vai passar por fases diferentes. Porque, existe uma preocupação muito grande por parte da censura de: primeiro, com o que os filmes mostram; e segundo, com que mensagem os filmes transmitem pro público. Então, por exemplo, no caso desse filme do Mojica, você cria uma solução no final para ressignificar de alguma forma a mensagem final do filme, mas as cenas gráficas de violência que estão presentes ao longo de todo o filme são um problema que continua existindo para censura, aí a censura vai classificar o filme como proibido para menores de 18 anos e vai encontrar outras formas de restringir o acesso desse filme. E, no caso da pornochanchada, existe uma percepção nossa que ganhou muita força em um discurso que vem do Cinema Novo, de que a pornohchanda interessava a ditadura para manter a população alienada, enquanto os filmes políticos eram proibidos. Isso é muito complicado de se afirmar, porque se a gente for pegar pra assistir propriamente o cinema que se classificou como pornochanchada, a partir do início dos anos 70, nesse primeiro momento, são filmes de comédia que tem uma pegada erótica muito leve, são aquelas piadas de duplo sentido, às vezes uma nudez muito parcial, nada muito explícito. Então, esse tipo de filme vai passar pela censura e vai escapar da proibição censória, mas vai receber uma classificação indicativa alta, vai ser visto pela censura como um cinema direcionado para adultos, mas que não precisa ser proibido, porque não há nada de muito pesado ali. Claro, não vou nem considerar o conteúdo propriamente político e crítico, porque isso era muito raro nesses filmes, sobretudo nesse primeiro momento da pornochanchada. Agora, conforme a década de 70 avança e, principalmente a partir de 79, no período de abertura política, a pornochanchada vai se tornando mais ousada. Então, a gente vai ter cenas de nudez mais ousadas, cenas de sexo mais ousadas, e ela vai passar a ser muito visada pela ditadura militar e pela censura, porque a ditadura enxergava essa questão da moral e dos bons costumes muito atrelada a política. Não existia essa separação entre assuntos literalmente políticos, explicitamente críticos, e cenas de sexo. Inclusive, se você pegar a legislação da censura, aparece em algumas das leis esse atrelamento entre as duas coisas. Existia um decreto em 1970, usado pela censura muitas vezes, que vai dizer abertamente que existia uma conspiração comunista internacional pra desagregar a familia cristã, e a pornografia fazia parte dessa conspiração. Também estou usando o termo pornochanchada de uma forma um pouco genérica, a pornochanchada estrito senso eram comédias, com esse viés erótico, feitas principalmente no Rio de Janeiro. Depois, existe toda uma produção na Boca do Lixo em São Paulo, que dialoga com esse universo inicial da pornochanchada, mas que vai se abrir para muitos outros gêneros. Mas, a gente bota tudo no saco da pornochanchada. Enfim, conforme a pornochanchada vai se tornando mais ousada, ela vai sendo cada vez mais o alvo privilegiado da censura, e aí a gente tem muitos casos de filmes que vão ser proibidos e determinados uma série de cortes. No período que eu estudo mais profundamente, o final da ditadura militar a partir de 79, isso é muito forte, porque ali já existia um certo direcionamento para evitar a censura de temas estritamente políticos, porque já não tinha mais censura à imprensa, então gerava uma repercussão ruim você proibir um filme por ele fazer uma crítica ao governo, como vai acontecer com Pra Frente, Brasil! em 82, por exemplo. O filme vai ser proibido pela censura e vai sair em todos os jornais e revistas, com entrevistas e matérias discutindo o assunto, então a censura à imprensa já tinha terminado, portanto a censura às temáticas estritamente políticas começam a perder força. Não acaba, tem alguns casos, mas nesse momento a censura moral à temas e imagens que eram vistos como atentados à moral, aos bons costumes e aos valores cristãos, que eram compartilhados pela população brasileira, eram proibidos. Então, a gente tem, ao longo da primeira metade dos anos 80, muitos filmes que vão sofrer com a atuação da censura e, ao mesmo tempo, são coisas que estão caminhando paralelamente, especificamente a censura ao cinema vai direcionando seu olhar cada vez mais para esse tipo de representação nos filmes. E, os filmes vão se tornando cada vez mais ousados, porque, principalmente a partir de 83 e 84, é o momento em que começa a se produzir muito no Brasil filmes aí sim estritamente pornográficos, hardcore, com cenas de sexo explícito, esses filmes vão ser muito visados pela censura. Mas, enfim, são filmes em geral muito populares e vão fazer muito sucesso de público, sobretudo, porque eram filmes feitos de forma muito rápida e barata, acabavam dando um retorno muito grande para os seus produtores.
Pedro Vidal: O Cinema Novo teve o apoio do povo? Ou o povo concordava com a censura do governo?
Wallace Andrioli: Acho que nenhum dos dois, o Cinema Novo teve muita dificuldade de se comunicar com um público mais amplo. Tem algumas exceções, alguns filmes que conseguiram escapar dessa bolha, como Macunaíma por exemplo. Mas, em geral, o Cinema Novo teve muita dificuldade para alcançar um público além da classe média-alta, intelectualizada, universitária da Zona Sul do Rio. Mas, também não é o caso de dizer que a população concordava com a censura, como eu tinha dito anteriormente, a censura era muito normalizada. Historicamente, existiram órgãos de censura muito cedo na história do cinema brasileiro, porque a censura era vista, principalmente a partir do período do Estado Novo, como uma função do Estado. O Estado deveria proteger a população de certas representações que ofendessem os valores da população. Mas, eu acho que o caso do Cinema Novo nem entra muito nisso, porque o problema que a censura tinha com os filmes do Cinema Novo era basicamente um problema de abordagem política. A maioria da população não era favorável à censura de temas políticos. Vou abrir um parênteses aqui pra ajudar a gente a entender isso: muitas vezes a gente fala de censura na ditadura militar como se fosse uma coisa só, mas a censura às artes era um campo específico, feita por um órgão específico, Divisão de Censura de Diversões Públicas, e a censura à imprensa era outra coisa, feita por outro órgão. Ao contrário da censura às artes, a censura na imprensa era feita clandestinamente, é claro que as pessoas sabiam o que estava acontecendo, mas ela não era oficial, não existia um órgão oficial no Estado brasileiro, responsável por fazer a censura à imprensa. Existia um órgão clandestino, com funcionários do Estado que eram deslocados para atuar nessa censura à imprensa, mas de maneira extraoficial, porque a censura à imprensa geralmente estava ligada a uma censura de temas políticos, temas que não podiam aparecer no jornal e nas revistas, porque incomodavam de alguma forma a ditadura militar. Essa censura estritamente política era mal vista, ela não era vista como uma atribuição normal da censura. A atribuição vista como normal, por uma parcela importante e significativa da sociedade brasileira, era essa de proteger a sociedade de certas representações consideradas ofensivas, como nudez, sexo, violência extrema, termos considerados inadequados, esse tipo de coisa. Então, acho que dá pra gente dizer tranquilamente que a maioria das pessoas não eram a favor de censurar e proibir os filmes do Cinema Novo. Mas, também não assistiam os filmes do Cinema Novo, eram filmes que acabavam ficando restritos a esse público de classe média intelectualizada, como eu tinha falado.
Pedro Vidal: No caso dos festivais de cinema na época, quando um diretor com a imagem manchada era chamado para exibir algum filme, como que o governo enxergava isso?
Wallace Andrioli: Também depende muito, tem vários casos de cineastas que vão conseguir exibir filmes em festivais internacionais, mas não vão conseguir exibir os filmes aqui dentro. Então, isso vai variar muito de como: primeiro, aquele cineasta e aquele filme vão ser vistos pelo Estado e pela censura; e de como a censura avalia o impacto que aquela obra pode ter lá fora e aqui dentro. A preocupação primordial da censura é com o público interno, não permitir que o público brasileiro consuma determinados tipos de representação aqui dentro. Então, como eu tinha dito, tem casos de filmes que vão ser liberados, ou que às vezes são liberados para festivais nacionais, como o festival de Gramado, de Brasília, mas depois são proibidos pro circuito comercial. Porque, há ali a percepção de que o público de festival é mais restrito, ele já está dentro daquela bolha intelectualizada, que é crítica à ditadura, o filme está falando pro seu público mesmo, mas ele não é liberado pro público em geral, porque é visto como perigoso ou negativo de alguma forma.
Pedro Vidal: Qual foi a influência que os movimentos estéticos e culturais exerceram no cinema? Como o tropicalismo e o modernismo, por exemplo.
Wallace Andrioli: Uma influência grande, porque esse cinema brasileiro — que de certa forma começa com o Nelson Pereira dos Santos nos anos 50, mas que ganha mais corpo nos anos 60 com o Cinema Novo — é um cinema moderno que busca instituir uma modernidade estética no cinema brasileiro, muito em consonância com o que era o cinema moderno de outras partes do mundo, principalmente na Europa, Itália com o neorrealismo, a França com a Nouvelle Vague. Mas, se a gente for pensar na relação desse cinema com a produção artística nacional, o modernismo é visto como o grande modelo de forma de se pensar a produção de arte no país, de maneira moderna, progressista, de vanguarda, que existe ali antes dessa experiência dos anos 50 e 60, que tem início lá nos anos 20 e que vai avançar pelas décadas seguintes. Então, o modernismo é tomado como uma fonte de inspiração muito importante para esse cinema moderno brasileiro, não à toa que a gente tem uma série de adaptações de obras modernistas, tanto nos anos 60, quanto nos anos 70 e 80, obras desses autores ligados às diferentes fases do modernismo. Por exemplo, o Cinema Novo em sua fase inicial no início dos 60, principalmente no pré-golpe, tem uma busca muito forte por representar uma realidade mais bruta da sociedade brasileira, de desigualdade social e miséria, ele vai buscar muitas vezes inspiração nas obras da geração da década de 30, que tem justamente como característica esse realismo, esse olhar pro tema das desigualdades e a miséria na sociedade brasileira. Posteriormente, a gente tem uma busca por obras da década de 20, inspiração em autores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, que vão ser muito fortes no Cinema Novo a partir do final dos anos 60. E, o tropicalismo entra nesse jogo também, porque o tropicalismo tem uma vinculação ao modernismo, principalmente ao pensamento do Oswald de Andrade e a ideia de antropofagia, que vai ser reapropriada pelo tropicalismo; e, o tropicalismo e a antropofagia vão ser também reapropriados pelo cinema moderno brasileiro. Então, a gente tem, principalmente a partir do final dos anos 60, uma série de filmes que dialogam com características estéticas do tropicalismo, que buscam representar nas suas narrativas a prática antropofágica, seja de maneira literal ou alegórica. A antropofagia é uma força presente em muitos desses filmes, principalmente no Cinema Novo do pós AI-5 no final dos anos 60, em que ele ganha um impulso alegórico maior. Até também nessa relação crescentemente conturbada com a censura, a alegoria acaba sendo uma forma para evitar certos problemas com a censura. A antropofagia e a estética tropicalista vão ser muito utilizadas e apropriadas pelo cinema brasileiro
Carolina Azevedo: E o cinema de mulheres na ditadura? Certamente são filmes e cineastas menos conhecidas, por que o movimento foi tão fraco aqui no Brasil em um momento de tanto “progressismo” nas artes? Pode indicar alguns nomes?
Wallace Andrioli: Eu acho que os motivos são os esperados, um machismo estrutural que acaba limitando muitas vezes o acesso das diretoras mulheres à produção de filmes, com algumas exceções, tanto que a maior parte das diretoras que conseguem realizar um número mais significativo de filmes nesse período é dentro do espaço dos curtas, a produção de longas vai ficar de fato muito na mão dos homens. Mas, tem alguns casos, o caso de uma diretora que a gente consegue ver uma obra mais sólida, que consegue ter continuidade ao longo do período da ditadura militar, é a da Ana Carolina, que começa no documentário sobre o Getúlio Vargas, um documentário muito importante, feito com imagens de arquivo, depois do início dos anos 70. E, depois ela transita pro cinema de ficção e vai fazer alguns filmes muito significativos nessa época, como Mar de Rosas e Das Tripas Coração. Eu citaria a Ana Carolina nesse aspecto de continuidade da obra, uma obra que tem uma produção regular nesse sentido, sendo mesmo uma exceção. E, citaria um filme que eu acho muito forte desse momento, e que dialoga com uma série de questões que a gente tá conversando aqui, que também foi um filme proibido pela censura. O filme é Os Homens Que Eu Tive da Teresa Trautman, uma mulher que não teve uma continuidade na sua carreira como diretora, mas acho que pelo filme em si, se eu fosse indicar um filme dirigido por uma mulher desse período seria esse. Além dos curtas, tem uns curtas excelentes da Helena Solberg por exemplo, como A Entrevista, que é maravilhoso. Mas, pensando nesse espaço de difícil acesso pras mulheres nesse período, que ocorre até hoje, mas nesse espaço dos longas, eu citaria esses dois exemplos: a Ana Carolina por uma obra mais sólida e a Teresa Trautman com Os Homens Que Eu Tive pelo filme em si, que eu acho excelente.