Chantal Akerman: Uma Identidade Nômade

Uma reflexão sobre o cinema frequentemente autor-referencial de Chantal Akerman e a identidade nômade que ela e suas personagens parecem compartilhar

Por Carmem Martins

Chantal Akerman nasceu em 1950, em Bruxelas, capital belga. Filha de uma sobrevivente do holocausto, Akerman tinha origem judia e fez parte de uma geração imediatamente posterior à guerra. Apesar de sua obra ser comumente associada ao feminismo, rejeitava essa classificação. Se relacionava com mulheres, mas também renunciou ao rótulo queer. Sua filmografia é vasta e abrange curta, média e longa-metragens, filmes dos mais e menos experimentais, mais e menos convencionais, e ainda, videoartes e instalações. Cometeu suicídio em 2015, quando enfrentava um quadro depressivo após a morte de sua mãe, com quem manteve uma relação muito próxima ao longo da vida.

Uma breve apresentação de quem foi a artista não se faz necessária aqui por simples contextualização, mas porque o trabalho de Akerman é fortemente autorreferencial. Entender quais eram as identidades e temporalidades que cruzavam à artista é se aproximar de seu trabalho.

Chantal Akerman faz seu primeiro filme (o curta-metragem “Saute Ma Ville”) no final da década de sessenta. Naquele momento, a Nouvelle Vague francesa era uma forte referência para o cinema independente e de autor. A estréia de Akerman bebe da fonte da vanguarda francesa, em consonância com o espírito de transformação que marca os anos sessenta. Ao longo dessa década, continua produzindo filmes em que a experimentação é mais presente, inclusos “News From Home” e “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, seus filmes mais conhecidos. A emergência dos novos movimentos sociais, de novas tendências na arte e no cinema e a tendência pós-estruturalista na teoria culminaram em um espírito otimista nos anos sessenta. O momento parecia promissor para a concepção de alternativas ao sistema. Na década seguinte, entretanto, a crise econômica mundial, junto a outros eventos históricos, traz novamente à tona problemas da infraestrutura e esmorece a atmosfera promissora que os anos anteriores carregaram.

Na década de oitenta, Fredric Jameson vai descrever uma nova realidade social a qual ele chama de pós-modernidade. Os anos 80 foram então o momento em que a pós-modernidade se enrijece, ou ao menos quando seus efeitos e sintomas são reconhecidos: a tomada de consciência de uma nova fase do capitalismo. Capital financeiro, redes de comunicação e globalização arquitetam essa nova estrutura. No mesmo período, Akerman parece dar início a uma nova fase de sua produção. Aqui, ela incorpora mais elementos do cinema convencional, mas dentro de um jogo consciente com suas normas e significados.

Nos anos 90 e 2000, a artista tem uma produção variada, experimentando, pela primeira vez, além da linguagem cinematográfica, os dispositivos que permeiam a produção visual. Chantal Akerman começa a pensar suas obras não apenas no formato do cinema, mas também videoarte e instalação. Na intersecção dessas três linguagens, ela estava interessada na experimentação com a imagem e o dispositivo enquanto produtores de significado.

Minha premissa é de que existe uma correspondência, intencional ou não, das movimentações estéticas da artista com os momentos culturais e sociais que ela presenciou. Mais ainda, que Chantal Akerman representa uma identidade característica da pós-modernidade, o que se justifica não somente pelo tempo histórico em que viveu e produziu, mas pelas diferentes identidades que a circundavam, muitas vezes de forma contraditória.

Existe um debate melindroso a respeito da adequação ou não do termo pós-modernidade. Se a modernidade de fato se concretizou, se essa é uma realidade global ou parcial e se a modernidade está de fato esgotada são questões que tangenciam a discussão. Porém, meu intuito não é entrar no mérito do termo, mas usá-lo em nome do contexto que ele representa. Esse contexto por vezes é chamado de capitalismo tardio, capitalismo financeiro, ou mesmo, contemporaneidade.

Há duas dimensões em que acredito que o trabalho de Akerman se aproxima da pós-modernidade, sendo a primeira estilística. Como diz Jameson, há a pós-modernidade, que se trata da estrutura econômica social, e há o pós-modernismo enquanto estilo artístico, que se inicia na arquitetura mas alcança todas as expressões artísticas. Esse estilo, que reflete a forma de seu momento histórico, pressupõe a complexidade, contradição e ambiguidade, em oposição à racionalidade moderna. A falência das grandes narrativas que sustentaram a modernidade (e também suas manifestações na arte) desencadeia em uma dissipação da fronteira que antes separava formatos superiores e inferiores de arte. A arte pós-moderna se abre para a colagem e fragmentação, para o encontro dos diferentes estratos culturais. É por isso que no cinema pós-moderno um recurso frequente é a colisão dos gêneros e estilos cinematográficos. É um cinema envolto por suas heranças. As estéticas cinematográficas se esvaziam de seus sentidos históricos para comporem um depósito de opções estilísticas possíveis de serem permutadas. A ironia e o pastiche também compõem a “poética pós-moderna”.

O cinema de Akerman se torna significativamente pós-moderno na década de oitenta. Seus trabalhos se tornam mais maliciosos, pois já não negam as convenções cinematográficas como antes, jogando com elas. “Golden Eighties” talvez seja, em termos de forma, o filme mais pós-moderno de Chantal Akerman. É um musical de 1986 que se passa dentro de um shopping. O musical é um gênero tipicamente industrial. Parte essencial da Era de ouro de Hollywood, esse gênero sempre contou com grande capital disponível. A proposta musical de Akerman é, portanto, irônica. Ela se apropria de um gênero faustoso para inseri-lo em outro contexto: a vitrine de shopping. O filme se passa em um andar do prédio, onde há um salão de beleza, uma loja de roupas e um quiosque de comida. Os personagens são as pessoas que trabalham nesses estabelecimentos, e vivem seus dilemas românticos e financeiros naquele espaço. Há um cinema ali, mas ele só serve como pretexto para que os personagens se encontrem escondidos.

Ao escolher esse cenário, a diretora converte a glória típica do musical numa associação com o consumo. Tudo está à venda, até o amor dos personagens. O nome do filme “Golden Eighties” denuncia o sarcasmo em relação aos anos oitenta. É nessa década em que o capitalismo consegue se infiltrar em um espaço que parecia imune: o inconsciente. Então Akerman afirma com seu filme o que Jameson teoriza em seu livro. O mercado financeiro incorpora tudo, inclusive zonas nobres como amor e cultura.

Os aspectos do musical tais como espetáculo, artificialidade e performance se mantém em “Golden Eighties”, mas aqui de maneira irônica. A conexão do filme com seu tempo histórico começa no título e se prolonga pelo cenário, enredo, tema. O filme abusa de recursos pós-modernos como ironia e intertextualidade, em um jogo na reutilização do gênero cinematográfico.

É no final da década de noventa que Chantal Akerman decide explorar outras linguagens visuais. Suas videoartes e instalações dificilmente aparecem em qualquer material sobre ela, mas tais obras exprimem bem a relação da artista com sua identidade e a temporalidade que a envolve. Esses trabalhos mostram uma Akerman mais madura, com mais domínio e consciência em relação às questões que pretende suscitar. Temas como o deslocamento, a ausência, a cidade, ainda protagonizam as obras, mas estas agora ocupam galerias e museus em um espaço tridimensional e requerem uma outra forma de interação com o espectador.

Irei descrever três obras para situar aqueles que desconhecem essa etapa do trabalho da artista. A primeira é “Woman Sitting After Killing”, uma instalação feita a partir de “Jeanne Dielman. 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, onde sete monitores dispostos em círculo mostram simultaneamente a sequência final do filme, em que Jeanne se senta à mesa, sozinha, depois de esfaquear um homem com quem acabara de ter uma relação sexual.

A segunda é “D’EST, au bord de la fiction” (Do leste, à beira da ficção), também uma instalação que se apropria de um filme da artista. Dessa vez o filme é “D’Est”, originalmente um documentário filmado em viagem de Akerman à Rússia, Polônia e Ucrânia, em que registra paisagens urbanas, pessoas circulando pelas cidades, carros e ônibus, refeições, interior de casas e outras coisas que captaram seu olhar na passagem por esses lugares. A instalação consiste em vinte e quatro monitores dispostos de três em três exibindo diferentes trechos do documentário. Aqui, entretanto, a artista privilegia as imagens tipicamente urbanas do filme: pessoas e transportes em trânsito. Essa é a obra de estréia de Chantal Akerman nas artes visuais.

O terceiro trabalho é uma videoarte de nome “Tombée de nuit sur Shanghai” (Anoitecer em Shanghai), é um episódio que faz parte do filme coletivo “L’État du monde — O estado do mundo”, de seis realizadores (entre eles, Chantal Akerman, Pedro Costa, Bing Wang e Apichatpong Weerasethakul). O episódio de Akerman é um vídeo que retrata o olhar de alguém observando o início de uma noite na maior cidade chinesa, núcleo financeiro global.

Visto que a experimentação fez parte do trabalho da artista ao longo de sua carreira, é de se esperar que em algum momento ela chegaria ao vídeo. Como afirma Jameson, o vídeo é a forma de arte representativa da pós-modernidade. A hibridização entre mídia e arte, e a predominância da imagem justificam tal afirmação. As fronteiras que diferenciam cinema experimental, documentário e videoarte se tornam mais escorregadias. Tudo está conectado e ao mesmo tempo há uma descontinuidade constante na elaboração de significados. O ambiente pós-moderno é baseado na instantaneidade e torna difícil a apreensão de tempos anteriores ou posteriores. É o que Maffesoli chama de “presenteísmo” e Jameson de “presente perpétuo”.

A descontinuidade do tempo e do espaço é muito presente na filmografia de Akerman, e nas instalações essas temáticas adquirem materialidade através do aglomerado de telas. Podemos ver nas instalações dela o que Jameson enxergou no trabalho de Nam June Paik:

“A velha estética é então posta em prática pelos espectadores que, desnorteados por essa variedade descontínua, decidem se concentrar em uma só tela, como se a sequência de imagens relativamente sem sentido que pode aí ser observada tivesse algum valor orgânico em si mesma. O espectador pós-moderno, no entanto, é chamado a fazer o impossível, ou seja, ver todas as telas ao mesmo tempo, em sua diferença aleatória e radical; tal espectador é convidado a seguir a mutação evolutiva de David Bowie em “The man who fell to earth” (que assiste a 57 telas de televisão ao mesmo tempo) e elevar-se a um nível em que a percepção vívida da diferença radical é, em si mesma, uma nova maneira de entender o que costuma chamar de relações.”

Porém ouso dizer que Chantal Akerman adiciona uma nova camada de interpretação ao escolher países orientais para falar de uma temporalidade pós-moderna. Com isso, ela denuncia mais um sintoma do capitalismo tardio, em que o mundo oriental se assemelha cada vez mais ao ocidental através da hegemonia do capital e do mercado. Identidade coletiva e identidade individual são debilitadas.

Assim, vemos em “Tombée de nuit sur Shanghai” telas enormes na parede dos prédios, (que remetem a Times Square) em que anúncios publicitários passam continuamente. De fundo, escutamos uma música no idioma espanhol. Em “Do leste, à beira da ficção”, pessoas passam pela cidade sem nunca chegar a algum canto. As telas mostram imagens diferentes, mas ao mesmo tempo muito parecidas. Há uma descontinuidade cíclica e o nome da obra é sugestivo. “O leste” (que diz respeito ao leste europeu, região dos países filmados), “à beira da ficção”; a que ficção se refere? Talvez a ideologia ocidental capitalista.

Podemos destacar como características expressivas da estética da videoarte, a hibridização do vídeo com outros meios, a fragmentação, a agilidade do tempo da imagem, a construção da obra como processo e o potencial de intensa subjetividade. Ao invés da forma fixa e perene tradicional na arte e no cinema, em prol de uma objetividade, a videoarte adere ao fluxo, e assim, à subjetividade. Essa forma de arte, pós-moderna por natureza, reflete a complexidade de seu tempo. A condição humana que irrompe desse período histórico parece não ser apenas identificada por Akerman, mas profundamente sentida.


Anteriormente, eu disse que há duas dimensões em que o cinema de Akerman encontra o pós-modernismo e busquei explicar como essa aproximação acontece de maneira estilística. A segunda dimensão é a pós-modernidade enquanto sintoma. Como disse David Harvey, a globalização resulta em uma destruição do espaço através do tempo, e isso se converte em uma paisagem política fraturada. Em uma realidade fragmentada, identidades antes estáveis se desorganizam, originando uma identidade maleável, formada por identidades que se somam, às vezes de maneira contraditória.

Stuart Hall diferencia três sujeitos ao longo da história moderna. O sujeito do iluminismo, unificado e racional, de identidade inalterada; o sujeito sociológico, resultado da interação entre indivíduo e sociedade; e o sujeito pós-moderno, que já não possui identidade fixa. Esse último tem Chantal Akerman como modelo. No cinema frequentemente autorreferencial da artista, ela ou suas personagens frequentemente parecem deslocadas do espaço em que vivem. Tal inadequação coincide com uma identidade nômade da qual a cineasta parece compartilhar. Entretanto, não acho que o cinema de Akerman seja definido por suas identidades, mas que comunica elas.

Enquanto mulher, apesar de “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles” ser referência na discussão do Female Gaze, não há uma unidade na construção dessa identidade feminina que percorra sua filmografia. Catherine Fowler argumenta que talvez a melhor forma de categorizar o cinema de Chantal Akerman seja “female”, que se distingue de “feminine” e “feminist”, e assim mantém uma distância de um possível essencialismo no primeiro caso e de uma base ideológica no segundo. No português “female” e “feminine” são traduzidos como “feminino”, então há uma sutileza linguística que prejudica a diferenciação dessa terceira categoria.

Todavia, é legítimo buscar um “olhar feminino” no cinema de Chantal Akerman, afinal ela era uma mulher, e suas protagonistas eram em sua maioria mulheres. Sua sexualidade também chamava mais atenção para uma análise de aspectos que envolvem identidade sexual e performance de gênero. Essas questões aparecem nas obras da diretora, mas nunca como foco. Ao contrário, são aspectos que reforçam a perspectiva deslocada e fragmentada de identidade.

No filme Je, Tu, Il, Elle, a personagem (interpretada por Akerman) fica dias sozinha em um pequeno quarto. Retira todos os móveis do cômodo, exceto por um colchão, onde passa o dia alternando entre não fazer nada e escrever uma carta. Não se sabe para quem é essa carta, isso não é importante. Na metade do filme, ela vai embora. Em seguida, pega carona com um caminhoneiro e o masturba. Depois do ato ele conta a ela sobre sua esposa, seus filhos e as mulheres com quem se relaciona casualmente no caminhão. Nos últimos dez minutos do filme a personagem vai a casa de alguém com quem parece ter alguma intimidade, elas transam e no dia seguinte Julie vai embora enquanto a outra ainda dorme.

Em Les Rendez-vous d’Anna, a protagonista sai com um homem com quem conheceu, mas não quer ter relações sexuais. No dia seguinte o encontra, o escuta falar sobre sua vida e quase não fala. Encontra outras pessoas com quem também pouco conversa. Finalmente encontra sua mãe, a única com quem se engaja na interação. Conta para a mãe que está apaixonada por uma mulher. Depois encontra Daniel, que assim como ela, passa boa parte de seu tempo em hotéis. Eles decidem passar a noite juntos no hotel. O final do filme mostra a personagem escutando a secretária eletrônica, que anuncia que ela tem uma viagem programada nos próximos três dias. Anna, assim com Chantal Akerman, é diretora de cinema, está constantemente trocando de cidade, tem uma paixão homossexual e é filha de imigrante. É provavelmente a personagem mais autobiográfica da diretora.

O que podemos perceber olhando para o enredo desses filmes é que não importa muito com quem a personagem se relaciona ou qual é seu objeto de desejo, porque esse interesse parece sempre relegado em razão de algo que é maior em sua vida: um constante deslocamento. Ela está sempre de passagem pelas cidades e pela casa de suas e seus amantes. Seus vínculos são sempre fracos, exceto pela mãe. Notamos então que o tratamento que Akerman dá às questões de gênero em seus filmes é mais performática do que de identidade.

Há ainda duas identidades que cruzam a história da artista e merecem atenção: belga e judia. Seus trabalhos fazem poucas referências diretas à sua nacionalidade, e esta aparece ainda menos nos materiais sobre a autora. Na verdade, os filmes de Akerman em que há alusão a Bélgica, se referem apenas a Bruxelas. Em Jeanne Dielman, Bruxelas aparece já no nome, informando o endereço onde o enredo se passa: 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles. A consideração do título completo traz consigo conotações para todo o filme. Jeanne está situada em uma rua que faz fronteira com um distrito francófono e um distrito de raízes holandesas. Além do francês e do neerlandês, a Bélgica ainda possui um terceiro idioma oficial no país, que é o alemão. O país em si tem uma identidade nacional que é complexa e fragmentada. Há uma cena do filme que reforça esse contexto social segmentado. Depois do jantar, Jeanne demanda que seu filho Stefan leia Baudelaire para ela. Na conversa que se segue, verifica-se que Stefan insistiu em ir para uma escola de língua holandesa. Jeanne, no entanto, está descontente com a escolha de idioma do filho. Essas sessões de leitura noturnas parecem planejadas por Jeanne com o objetivo de garantir que o menino preserve sua educação francesa.

O outro momento da filmografia de Akerman em que sua nacionalidade é explicitada é em News From Home. No documentário, uma narração na voz da própria cineasta lê as cartas enviadas por sua mãe, da Bélgica, enquanto as imagens mostram cenas de Nova Iorque, onde Akerman está vivendo. Apesar de o nome do documentário sugerir que Bruxelas é sua casa, sabemos pela história da cineasta que ela nunca mais voltou para ficar. A relação de lar que a artista estabelece com a Bélgica é mais vinculada a seu apego por sua mãe do que verdadeiramente uma identificação com sua nacionalidade. Entretanto, o filme indica que Chantal Akerman também não estabeleceu vínculos significativos em Nova Iorque. O conteúdo das cartas da mãe revela que a filha estava frequentemente mudando de emprego e de casa. A primeira carta diz: “Espero que você não fique longe por muito tempo e que tenha encontrado um novo emprego”. Depois outra carta informa: “Fico feliz que não tenha mais aquele emprego […] Espero que seu novo flat seja acessível e não esteja em uma área perigosa […]”. E depois outra correspondência revela: “Você mencionou um emprego diferente. Espero que seja interessante”.

Assim, percebemos que a artista está em constante fluxo pela cidade. Tal movimentação poderia ter um caráter de euforia, de empolgação com a nova cidade e com as interações que ela proporciona. Entretanto, as imagens do filme reforçam o sentimento de inadequação, ao invés de pertencimento. Nunca vemos a casa de Akerman, ou seu trabalho, ou amigos. Nenhum tipo de relacionamento aparece nas filmagens. Ao contrário, tudo o que vemos são cenas de uma Nova Iorque povoada, porém solitária. As imagens mais comuns são de não-lugares, espaços de passagem como ruas e veículos.

Chantal Akerman passou sua vida transitando entre Bruxelas, Paris e Nova Iorque, sem nunca se fixar em nenhuma das cidades. Nesse meio tempo ainda, estava sempre viajando para divulgar seus filmes. Suas obras sugerem que os vínculos com os outros eram sempre passageiros, fracos. A relação materna parece ter sido a única constante em sua vida.

Espaços de trânsito como os que tanto aparecem em News From Home são cenários comuns também em Les Rendez-vous d’Anna. A protagonista passa expressiva parte do tempo em táxis e trens. Está hospedada em um hotel, e sem perspectiva de permanecer em algum lugar, visto que o filme fecha anunciando sua próxima viagem. Não é só a protagonista que parece envolta em impermanência. O homem que Anna conhece revela que foi abandonado por sua esposa, que mudou-se para Frankfurt com um turco. A mulher com quem conversa na estação, lhe conta que saiu da Alemanha para viver na Bélgica, porém não conseguiu se acostumar e retornou ao país de origem, e que agora também não se sente bem ali, já que seus amigos ficaram na Bélgica. Percebemos então que a inadequação não é traço particular da protagonista, mas faz parte do universo diegético do filme, e da filmografia de Akerman como um todo. Também a câmera potencializa tal impressão: em geral, são planos abertos, que mostram o corpo em cena à parte do resto. O corpo parece flutuar no espaço.

A pesquisadora Natália Lago usa da teoria do deslugar para caracterizar o cinema autorreferencial de Chantal Akerman. A ideia de deslugar abrange dois conceitos: lugares antropológicos e não-lugares. Ambos são concepções de Marc Augé, na investigação da rotina de indivíduos “sobremodernos” ou “pós-modernos”. A primeira categoria diz respeito a lugares de vivências históricas e identitárias, e a segunda aos lugares de passagem, onde se é anônimo e as conexões são inexistentes ou superficiais. O deslugar então revela uma condição de despertencimento, em que o indivíduo nunca pertenceu ou deixa de pertencer ao seu lugar para estar constantemente desterritorializado, alternando entre inquietude mortificante e apatia paralisante.

Mas há ainda uma outra identidade em jogo crucial para entender a posição de Chantal Akerman. Sua origem judaica é pouco explorada nos materiais sobre a diretora, ainda que ela tenha reforçado sua importância. Escritores da Cahiers du Cinéma, em observação sobre “News From Home”, comentam: “As viagens aparecem com frequência em seus filmes… Há uma noção de deslocamento, mas também das margens”. E ela responde: “Eu creio que isso pode ser explicado pela minha origem judaica”. Depois de filmar Les Rendez-vous d’Anna, ela afirma: “Eu me sinto mais e mais judia, e isso está ficando mais evidente em meu cinema”. De que forma sua origem étnica manifesta-se em suas obras? Para entender isso é necessário desenvolver, de maneira breve, algumas questões do judaísmo.

Uma pessoa é judia se sua mãe for judia, ou seja, é uma herança materna. Considerando a forte ligação que Akerman tinha com sua mãe, é de se imaginar que tal herança adquira outra camada de relevância. Porém, há mais especificidades que potencializam a relação de Akerman com o judaísmo. Sua mãe, Natalia Akerman, foi a única pessoa da família a sobreviver ao holocausto. Foi embora da Polônia e passou a morar na Bélgica como imigrante. Chantal Akerman nasceu alguns anos depois do fim da guerra, em uma família devastada pelo massacre judeu. Os traumas eram muito recentes. Em “Entretien avec ma mère, Natalia Akerman”, um curta-metragem apenas de entrevistas com sua mãe, a diretora revela: “Nasci em 1950. Fui a primeira criança do pós-guerra e carreguei esse peso comigo”.

Porém, o que unifica os judeus? Segundo o rabino Ahad Ha-Am, os judeus eram uma nação antes mesmo de serem uma comunidade religiosa, pois: “A identidade judaica não está enraizada na especulação teológica; está fundamentada na civilização judaica”. E ainda, o escritor Isaac Deutscher explanou em seu livro “The Non-Jewist Jew and Other Essays”: “O que então faz um judeu? Religião? Eu sou ateu. Nacionalismo judaico? Eu sou um internacionalista. Em nenhum sentido sou eu, portanto, um judeu. Porém sou judeu por força da minha solidariedade incondicional com os perseguidos e exterminados. Sou judeu porque sinto a tragédia judaica como minha própria tragédia; porque sinto o pulso da história judaica.” Através dessas duas falas, podemos inferir que há uma narrativa coletiva que unifica o povo judeu, narrativa essa que tem a diáspora judaica e o holocausto como seus grandes marcos traumáticos.

Há um alto coeficiente de desterritorialização na identidade judia que parece repercutir em um sentimento contínuo de desajuste ao lugar que se encontra. O cinema de Chantal Akerman, apesar de nunca explicitar sua relação com o judaísmo, se apresenta como uma amostra dos sintomas do desabrigo que atravessa a história do povo judeu. Além do nomadismo, frequentemente retratado em sua filmografia, há também um sentimento de medo constante que Akerman atribui aos traumas judeus. Em “Entretien avec ma mère, Natalia Akerman”, em conversa com sua mãe sobre “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, ela diz que o esforço de Jeanne em manter-se sempre ocupada em sua rotina tem uma dimensão para além da alienação feminina pelo trabalho doméstico, que é encobrir o medo da mudança. Há uma ferida histórica que resulta em receio de que qualquer coisa possa sair de seu controle.

Ao vasculhar a história de Chantal Akerman, percebemos que diferentes sistemas culturais se cruzam. Há uma sobreposição de identidades concomitantemente a uma realidade pós-moderna cada vez mais fragmentada. O que resulta disso é uma identidade volúvel, incapaz de se unificar em torno de um “eu” coerente. Nas variadas linguagens, os trabalhos de Akerman expõem uma vivência marcada pela presença da falta, que carece de pertencimento e intimidade. Distinguir as especificidades identitárias da artista, bem como as peculiaridades que estruturam o momento histórico em que nasceu, viveu e produziu é relevante não porque ela assume tais posições, mas porque, como Foucault articula, nos descreve a posição material social dos autores em relação ao discurso.