Contos de uma adolescência febril 

Em Travolta et Moi, Patricia Mazuy atualiza o desastre juvenil do terrível Saturday Night Fever ao retratar uma juventude sem futuro, mas, desta vez, apaixonada

Carolina Azevedo 

Surtout ne rouvre pas les yeux donc je ne suis pas revenu. 

C’est moi qui les rouvrirai. 

Quand tu sens ma bouche, tu ouvres les yeux. 

“Night fever” embala um John Travolta que voa pelos cômodos do pequeno apartamento popular que divide com sua família. Seu quarto é inundado por imagens da cultura pop: pôsteres de Bruce Lee, Farrah Fawcett e Sylvester Stallone (como Rocky Balboa) aparecem rapidamente. A imagem de Al Pacino como Frank Serpico é a que fixa o olhar – é o ideal ao qual o personagem de Travolta aspira, em Saturday Night Fever

Para a Christine de Patricia Mazuy, é esse John Travolta quem estampa os pôsteres de sua casa e os sonhos que ela projeta ainda acordada, no caminho de ônibus entre a escola e a padaria de sua família. À protagonista de Travolta et Moi, no entanto, ele não serve de espelho, como Al Pacino a Travolta, mas inspira desejo. 

Este pequeno ensaio surge como um anseio de falar sobre uma juventude perdida no ritmo da discoteca. Como definiu Pauline Kael, Saturday Night Fever é sustentado “pela batida da discoteca, que mantém a audiência em sintonia empática com os personagens”. Tudo é desastroso nas vidas dos personagens desses dois filmes. Uma morte precoce marca o final explosivo de cada um. Mas, em revisão, há algo que os distancia profundamente: em um, há paixão; no outro, não passa de pretensão. A impressão espelha o modo de fazer cinema que os separa. 

Saturday Night Fever aparece em 1977, ano de ouro para Hollywood, com lançamentos como Star Wars e Close Encounters of the Third Kind lotando salas de cinema mundo afora. Entre as tramas interestelares, o filme de John Badham se destaca ao descer bem fundo, à Bay Ridge, no Brooklyn. Talvez seja equívoco creditar Badham como “dono” do longa, que pertence muito mais a seu produtor, Robert Stigwood, empresário do Bee Gees (que assina a trilha inconfundível) e produtor de Jesus Christ Superstar (1973), Tommy (1975) e Grease (1978). Como definiu Kael, é um filme que se define por seu ritmo – com um roteiro frágil e profundamente machista, o que o carrega aos dias de hoje são os movimentos de Travolta em reação às músicas do Bee Gees. É este corpo dançante que o leva até Christine, em Travolta et Moi

Mas o filme de Travolta (talvez seja mais honroso dar ao ator o título de “dono” deste filme) espelha o modo de produção em que surge. Ele faz parte da massa de filmes que Susan Sontag definiu em seu “The Decay of Cinema” como “filmes ordinários, feitos puramente para fins de entretenimento (isto é, fins comerciais), que são surpreendentemente tolos”. Ela conclui que o problema não está apenas no capitalismo hollywoodiano, mas na morte de um amor muito específico ao cinema – a cinefilia: 

O amor que o cinema inspirava, no entanto, era especial. Nascia da convicção de que o cinema era uma arte como nenhuma outra: quintessencialmente moderna; distintamente acessível; poética e misteriosa e erótica e moral – tudo ao mesmo tempo. O cinema tinha apóstolos. (Era como uma religião.) O cinema era uma cruzada. Para os cinéfilos, os filmes encapsulavam tudo.

Susan Sontag em “The Decay of Cinema” (fevereiro de 1996)

Seu pensamento parte da cinefilia dos jovens turcos da Cahiers du Cinéma, que criaram seu cinema, ideal de modernidade, e o forjaram na nouvelle vague francesa, que se espalhou a partir da década de 1950 e ditou a norma do “cinema de autor” ao redor do mundo – ao que parece a Sontag, esgotado desde então. Nessa França, 40 anos depois, na década de 1990, surge um outro cinema. A paixão de cineastas como Mazuy, Pialat, Akerman, Denis e Carax não se contenta em reformar a cinefilia de Godard e Truffaut, optando por uma revolução do sentimento. Travolta et Moi é um dos grandes marcos dessa revolta violenta. 

Violenta pois é esta a natureza do amor jovem. Travolta et Moi acaba como um arrebatamento do sentimento e do próprio cinema. Mazuy transforma a dança vazia – mas não menos encantadora – de John Travolta no balé no gelo de sua Christine através de uma paixão que, em Saturday Night Fever, era movimentada simplesmente por uma obsessão quase mercadológica, naquela lógica dos concursos de dança, o que reflete na própria forma do filme enquanto produto. 

Quando a personagem, após a tragédia, anda pela pista de gelo e recita o “poema” que abre este texto, ela anuncia um cinema que abre os olhos a uma nova paixão por essa forma tantas vezes dada como morta por seus críticos. É a ressurreição de Sontag: “Se o cinema pode ser ressuscitado, será apenas através do nascimento de um novo tipo de amor-ao-cinema.” 

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