Focado na atuação dos dois atores principais, o filme acredita na sua própria simplicidade e faz da sua estrutura entre omissões de espaço e tempo um estímulo de constante renovação
Davi Krasilchik
Por mais que a linguagem pictórica tenha se especializado como um dos mais sedutores expoentes do audiovisual, talvez estejam nos ruídos de uma imagem os seus traços mais interessantes. Ao representar um assunto de maneira gráfica, é deixada uma enorme margem para o que se esgueira para além do quadro. O dito pode em muito indicar o que somos incapazes de colocar em palavras, da mesma forma que a ilustração parcial de uma personalidade se completa em características que podemos supor como complementares.
Pela estruturação de uma narrativa articulada em saltos e omissões de tempo, Crônica de Uma Relação Passageira prioriza a dinâmica dramática, dentro de quadro, de suas personagens, mas nem por isso os simplifica e deixa de lado o poder da sugestão. É nessa construção mais direta que o relacionamento elaborado se torna tão convincente.
Apesar da presença nítida do melodrama enfeitado, a confiança da direção de Emmanuel Mouret na simplicidade do projeto é um de seus maiores métodos. Mesmo com a passagem inicial da sequência do museu, em que o azul banha o contraluz sugestivo do casal protagonista, ou o flerte direto com a força onírica de resolução de conflitos ao final, o filme tem seu motor nas batalhas travadas entre os seus dois expoentes humanos, dentro e fora do quadro.
Seja nas panorâmicas que priorizam uma figura em detrimento da outra, na forma como essas se dispersam – navegando através dos diversos planos da imagem, traduzem as sua relações de poder – ou na inexistência de momento exclusivos para cada personagem, é interessante como a mise-en-scène da obra se ancora com um teor quase opressivo.
Ciente das simplificações que as oportunidades criativas do cinema oferecem – e com as quais se permite se deliciar em passagens mais afetadas pela montagem, que idealizam a concretude do relacionamento protagonista –, o diretor alia a doçura dos momentos ali retratados à ausência das lacunas inerentes ao seu conceito condutor, que nos provoca eternamente com a incompletude da essência daqueles que acompanhamos.
Isso confere a atmosfera transitória prometida no título e prende o espectador por toda a condução, forçando-o a esperar pelo pior a cada mudança entre cenas. Cada troca de diálogos se torna uma verdadeira disputa, onde os apaixonados reivindicam a responsabilidade de definir uns aos outros, proibidos de existirem individualmente e conferindo assim uma áurea de sedutora volatilidade.
Não suficiente, os cortes abruptos que encerram os diversos blocos dialogam com a universal ânsia pela fuga, conferindo esse estado de constante movimentação – também presente na própria composição corporal de todos inseridos no quadro – como uma consequência da ardência de um amor envolvente e igualmente indomável.
Tem-se, assim, mais uma das formas que a obra encontra de exaltar a importância do inconsistente, daquilo que sempre se transforma e que se define em sua indefinição, na diferença da subtração entre o seu estado inicial e aquele de seu desfecho.
Finalmente, impacta o grau de autoconsciência com o qual Mouret coroa a obra em seu final agridoce, que em um freeze frame fantasioso reconhece o poder maior das emoções de vivências incertas, em detrimento de gélidos pontos de segurança e concretude. Assim se finaliza uma obra que se completa em suas próprias incompletudes, fundamentais em reforçar a força que as paixões incertas costumam exigir uma vez na tela grande.