Ecos inscritos sobre o tempo: A Mulher do Ganges (Marguerite Duras, 1974)

Sobrepondo diferentes temporalidades, Marguerite Duras investe no esgotamento dos limites que separam o espaço e o tempo, embaralhando as memórias de uma antiga paixão

Davi Krasilchik

Em A Mulher do Ganges, Marguerite Duras sobrepõe diferentes temporalidades. As lembranças e cicatrizes que assolam suas personagens transgridem um espaço que existe em diversas linhas e em lugar algum. Tudo não passa de uma mera ilusão.

Figuras que se alinham em um mesmo plano vagam pelas areias tomadas pelo vento e pela água. São em todos os instantes rodeadas por mudanças de estado, partículas que se transmutam do oceano para o ar, da terra para a superfície.

O ponto de partida é o retorno de um homem para o lar de uma antiga paixão, intrínseca à sua existência. Esse ser errante busca a dita Mulher do Ganges, figura elevada, de família rica, dona de uma intangibilidade que ultrapassa o tecido social e alcança a metafísica.

A volta a um hotel ancião, cujas paredes testemunharam uma história de amor, autoriza Duras a dilatar o atravessamento dos fantasmas que vagueiam por aqueles corredores. 

O diminuto grupo de hóspedes que preenchem os quartos, as varandas e os bancos arenosos são sugestões de eras que atravessaram o passado dessa dupla de personagens. Eles rumam em círculos, reforçados pelos quadros estáticos e pela forma como preenchem os cenários da diretora, se sobrepondo uns aos outros como desmembramentos de uma mesma memória, transportadas pelos ventos.

É interessante observar a relação que a cineasta propõe entre a oralidade e o visual. A ausência quase perpétua de falas é compensada por uma voz onírica, espécie de eu lírico feminino que fabula por cima do teatro de marionetes que observa abaixo de si. São narrações que propõem uma série de reescritas desse conto apaixonado, que desfalece a cada nova sequência.

A ideia é criar um descompasso entre o que se desenha de forma imagética – que, por consequência, estabelece uma relação mais imediata com o espectador – e aquilo que se escuta. A voz suave, vagarosa, e que se permite repetir uma diversidade de termos, construções e ideias, se ramifica no inconsciente daqueles que testemunham A Mulher do Ganges.

Ela os convida a rememorar sua própria bagagem. Os invoca a rever seus próprios passos, suas experiências mais íntimas, que se espiralam no encontro entre o mar e a terra. Em uma instância mais prática, pensando a relação com a matéria dos rostos – ainda que bastante indefinidos, quase sempre distantes da tela, em ângulos que sugerem uma necessidade de fugir às lentes –, dos ambientes e da montagem ali em andamento, é como se essa consciência encenada reiniciasse a interpretação de cada signo visual.

Provoca interrupções que reinventam um mesmo enquadramento, amontoando significados sobre uma mesma paisagem, testando os limites por detrás da tela. Quantas lembranças cabem em uma mesma mente?

Esse transe eterno, que torna impossível distinguir o que é estar sonhando e o que é estar acordado, configura uma obra capaz de abolir qualquer barreira hidrográfica, sejam elas físicas ou imateriais. 

Os salões vazios sempre escondem os seus fantasmas. Convidam o olhar a inserir, por entre as sombras, as suas assombrações mais íntimas, responsáveis, em uma vida passada, pela separação de um homem e uma mulher predestinados a estarem juntos.

Não há sonho algum de Marguerite Duras do qual sejamos capazes de escapar.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *