Hong Sang-soo: sobre acaso e controle | 47ª Mostra

In Water (Foto: Divulgação/ 47 Mostra Internacional de Cinema de São Paulo)

Em seus dois últimos filmes, Hong Sang-soo progride seu estudo metalinguístico em duas obras opostas

João Ferreira

Em 2023, em suas múltiplas funções, Hong Sang-soo brilha mais uma vez nos seus dois mais recentes longas-metragens: In Water e In Our Days. Embora compartilhem semelhanças temáticas, eles não somente diferem significativamente em termos de tom e linguagem, como também representam um interessante momento da carreira do cineasta.

De um lado, o mais sensorial e conceitualmente desolador dentre todos os filmes do diretor. De outro, uma obra notória pela graciosidade que possui. Desta maneira, o diretor coreano nos oferece uma visão aprofundada de duas faces de suas obras: em In Water, a operação do dispositivo cinematográfico como um jogo metalinguístico; em In Our Days, a exploração da experiência espontânea da vida cotidiana e seus pequenos milagres. Ambos os elementos estão presentes nas duas produções, mas, em comparação ao conjunto da filmografia do diretor, é notável que estas são as únicas em que um aspecto é destacado em detrimento do outro.

In Water

Em In Water acompanhamos o jovem Seoung-mo, sua pequena equipe de duas pessoas, e seu desejo de fazer um filme. Já no primeiro momento, nota-se uma diferença dessa para as outras obras do diretor. Os protagonistas não são pessoas de meia idade que regam suas noites de soju, mas jovens que se esforçam para enxergar o futuro tão translúcido quanto a imagem do filme. Seoung-mo diz que seu desejo enquanto realizador é o de fazer um filme pela honra, porém, conforme o filme progride, seus objetivos tornam-se mais turvos e pessoais. As tentativas da pequena equipe são variadas, mas nenhuma parece conter uma ideia tão epifânica para Seoung-mo quanto a originada em sua mente após uma breve conversa com uma catadora de lixo na praia. A partir dela, ele planeja uma reconstituição do momento vivido, em seu filme — que assim como o filme de Hong possui como característica evidente o desfoque na imagem —, porém finalizando-o com a caminhada de seu personagem ao mar. Num momento final, semelhante a uma despedida, Seoung-mo conversa com seus amigos sobre a cena que iriam gravar, e seu significado para ele. A explicação verbaliza a angústia diante das incertezas que ele tem diante da vida e, ao som de uma música melancólica que compôs, caminha ao mar, embaçado pela imagem do filme, até tornar-se apenas uma mancha de cor e fundir-se à paisagem.

Em In Water a falta de clareza na imagem e a “morte” de Seoung-mo podem ser compreendidas de mais de uma maneira: por um lado mais narrativo, a desintegração daquela personagem na paisagem pode ser interpretada como “morte negativa”, pela evidente desistência da vida; por um lado mais meta-narrativo, pode ser interpretada a “morte metafórica positiva”, onde quem morre é o “controle” e quem sobrevive é o “acaso” — o que constitui um breve comentário sobre o método de produção e de direção de Hong —, representado pela união de Seoung-mo ao mar.

In Our Days

Das questões levantadas por In Water, em In Our Days uma boa parte é respondida. O segundo filme lançado pelo cineasta neste ano constitui uma visão mais evidentemente otimista e objetiva no que propõe. Após voltar para a Coreia, Sang-won visita a casa de sua amiga para passar um tempo com ela e seu gato carinhosamente apelidado de “Nós”. Concomitantemente, um poeta venerado é visitado por um jovem fã e ator que busca inspiração na conversa com seu ídolo enquanto outra jovem os grava para o seu TCC.

O segundo filme é divido em vários trechos sinalizados por intertítulos, que descrevem, ou deveriam descrever, a ação a seguir. Não há grandes nem pequenos conflitos, tampouco questões. Todos os problemas que poderiam desenvolver algum “arco narrativo” ou “dramaticidade envolvente”, por menor que fossem, são sempre interrompidos, ora através de cortes repentinos, ora por casualidades banais.

Todos os desdobramentos da trama parecem revestidos de uma incômoda banalidade, assim o aguardado “twist” metalinguístico, já característico das obras do diretor, é apresentado de maneira mais sutil. Em um excerto do filme, Sang-won – interpretada por Kim Min-hee, esposa e parceira criativa de Hong Sang-soo – revela a uma jovem que decidiu interromper sua carreira de atriz. Haja vista que, em diversas situações, ela sentia carência do controle sobre sua própria interpretação, limitando-se a oferecer sugestões aos diretores e a seguir rigorosamente suas orientações a partir disso.  Com efeito, surge a dúvida a respeito das performances em In Our Days: se seguem um roteiro, se são improvisadas, se são genuinamente autênticas ou quem sabe um híbrido de todas as hipóteses. Tendo em vista que este é o filme com os planos estáticos mais longos do diretor, tudo é possível, inclusive o improviso total, o que explicaria também a desconexão de alguns trechos com os seus intertítulos descritivos. No fim, o que resta é apenas hipótese, mas, ao considerar todas as que foram levantadas, é possível ver que Hong, mais uma vez abraça o acaso de trabalhar com tantas variáveis distintas e conflitantes. 

O que Hong pretende com In Our Days, parece em parte um comentário sobre aquele “acaso” que abraça durante o processo de filmagem, porém pode também ser apenas uma piada com o espectador. Este que sempre espera o diretor coreano lançar o mesmo filme já lançado dezenas de vezes nos últimos anos, mas que agora, já acostumado com suas formas, precisa de fato encarar o “acaso” enquanto assiste, mesmo que a surpresa seja não haver surpresa alguma.

João Ferreira é estudante de Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) onde idealizou, dirigiu e editou seu primeiro curta-metragem. Seu interesse recai sobre obras crípticas e é altamente influenciado pelo cinema amador e experimental.

HYO-WON, Lee. Hong Sang-soo Explains His Improvisational Methods for Fast Filmmaking: Also with three releases this year, the idiosyncratic director has two titles in the Cannes lineup: ‘The Day After‘ in competition and ‘Claire‘s Camera‘ starring Isabelle Huppert.. The Hollywood Reporter, [S. l.], 20 maio 2017. Disponível em: https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-news/hong-sang-soo-explains-his-improvisational-methods-fast-filmmaking-1005875/. Acesso em: 23 out. 2023.

LEFEBVRE, Romain. The Hong Sang-soo Method: DOSSIER HONG SANG-SOO. Sabzian, [S. l.], p. 11-11, 5 maio 2020. Disponível em: https://www.sabzian.be/text/the-hong-sang-soo-method. Acesso em: 23 out. 2023.