O segundo longa de Schoenbrun defende o poder da ficção para nos ajudar a descobrir quem somos, em uma alegoria trans com a melhor trilha sonora do ano
Eduardo Lima
Num passado distante, filmes adolescentes eram dois produtos em um: um filme, que viraria uma fita VHS ou um DVD alguns meses depois de estrear nos cinemas, e um álbum de trilha sonora. A curadoria do diretor e do coordenador musical, misturando músicas já existentes e composições novinhas, gravadas especialmente para o filme, resultava em álbuns legais de ouvir como álbuns, do começo ao fim.
Uma arte perdida resgatada por Jane Schoebrun, que dirigiu I Saw the TV Glow e pensou em sua trilha sonora, com alguns dos nomes mais interessantes da música indie da última década, como Caroline Polachek, yeule, Phoebe Bridgers e Alex G. Em suas primeiras conversas com a produtora A24, Schoenbrun insistiu que a trilha sonora era parte integral da nostalgia do filme, que aponta para os anos 1990 com sua estética (a história se passa em 1996) e para o futuro com seu cinema. É só o segundo filme de Schoenbrun, que já é claramente um dos maiores talentos que o cinema norte-americano ofereceu ao mundo nos últimos anos.
Os adolescentes Owen e Mandy criam uma amizade a partir de um programa de televisão que os pais de Owen não deixam ele assistir. Ele vai até a casa de Mandy, escondido, para assistir The Pink Opaque. A série, inspirada por Buffy the Vampire Slayer, conta a história de Isabel e Tara, adolescentes que ganham uma conexão psíquica especial durante um acampamento de verão e se unem no plano astral para lutar contra o Sr. Melancolia, um vilão que pode distorcer a sensação do tempo e da realidade.
O filme existe na linha tênue entre coming-of-age realista e a vida no mundo dos sonhos – principalmente pesadelos – cheio de neon e cenas assustadoras não pelo conteúdo, e sim pela forma, depressiva e sombria. O filme nunca é claro: mesmo nas cenas ao ar livre durante o dia, a iluminação é escura. Em I Saw the TV Glow, a luz vem das telas, não do mundo real. Isso não quer dizer que o filme é cinza, como tantos saindo de Hollywood nos últimos anos. TV Glow é um filme bonito, cheio de imagens que ficaram na minha cabeça por dias depois de assistir (a cena no corredor cheia de escritos neon é fantástica).
Os protagonistas começam, então, a confundir a ficção com a realidade. Eles não são ignorantes ou ingênuos. Mandy e Owen percebem que a realidade é alienante e que melancolia não é só um vilão num programa de TV, mas uma condição existencial. The Pink Opaque é mais real que a própria vida real, repleta de figuras familiares hostis e dificuldades na escola. É difícil ser adolescente, todo mundo sabe.
Mas é mais difícil ainda ser um adolescente queer. Owen se enxerga em Isabel, uma das protagonistas da série. Como muitos adolescentes, ele investe seus sentimentos na cultura pop. A vida de fã oferece conexões mais genuínas que as disponíveis na realidade. No caso dessa alegoria trans cuidadosamente construída, até o relacionamento consigo mesmo é mais verdadeiro na contraparte fictícia. Por meio do poder maravilhoso da ficção de colocar o espectador no corpo de outra pessoa, Owen pode se sentir confortável num corpo que é mais seu do que o seu próprio.
I Saw the TV Glow é uma máquina de empatia. O cinema abre as portas para experiências que o espectador talvez nunca viva. É uma ferramenta poderosa de imaginação. Para Owen, a série é uma chance de imaginar uma vida melhor, como uma ela. Para o espectador que já passou por isso, eu imagino que a sensação de ver a TV brilhar seja um misto de esperança e medo, um susto de que as coisas não precisam ser como são. Para quem talvez tenha dificuldade de entender, o filme explica, não com palestra e conteúdo, mas com a sensação aterrorizante de não ser quem você parece ser. É muito difícil não sair de I Saw the TV Glow agoniado por Owen, ou por qualquer um que esteja na mesma situação. Para esses, que estão com medo de viver a vida real que imaginam, Schoenbrun tem uma mensagem: ainda há tempo.