“Quão pequeno isso pode ser?”: a busca por um cinema sutil com Lenny Abrahamson | 47ª Mostra

Foto: Divulgação / 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Confira a conversa da Revista Vertovina com o diretor de Pessoas Normais, O Quarto de Jack e Adam & Paul sobre como ele dirige seus atores e porque realizou tantas adaptações literárias

Eduardo Lima

Adam & Paul acompanha dois amigos, dependentes químicos, que têm que lidar com o desprezo de todos os conhecidos, a falta de grana e a compulsão de conseguir mais uma dose de heroína. Essa breve sinopse pode levar a pensar que o filme de estreia de Lenny Abrahamson, um dos principais diretores da Irlanda do século XXI, é um retrato realista da crise de drogas europeia. Não é um palpite equivocado, mas também não é justo com o filme, que começa como uma comédia, passa por alguns momentos de emoção e termina com uma das cenas mais desesperançosas que já assisti.

A mistura de gêneros e tons é presença garantida na obra de Abrahamson, que começou no cinema e, recentemente, passou para a TV, dirigindo parte das adaptações dos livros Pessoas Normais e Conversas entre Amigos, da também irlandesa Sally Rooney. Enquanto Conversas pode parecer uma reprise não tão interessante, a primeira adaptação, de Pessoas Normais, com Paul Mescal e Daisy Edgar-Jones, é uma revelação. Os primeiros seis episódios, dirigidos por Abrahamson, são brilhantes na construção de personagem e na sutileza com que mostra os desequilíbrios de poder no relacionamento dos protagonistas. A série é silenciosa, mas arrebatadora, com o holofote cuidadosamente apontado para as atuações brilhantes do par romântico, que hoje são dois dos astros mais conceituados e cobiçados do cinema anglófono. Dois anos depois de sua primeira grande atuação, em Pessoas Normais, Paul Mescal já estava sendo indicado ao Oscar.

Lenny Abrahamson é um dos nomes internacionais a compor o júri da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Antes mesmo de tomar seu café da manhã, às 08:30 de um domingo chuvoso, o cineasta sentou para conversar com a Vertovina sobre seu filme selecionado para exibição na Mostra e seu jeito sutil e delicado de dirigir filmes e séries.

Eduardo Lima: Eu assisti Adam & Paul na Mostra ontem, e não sei se foi sua escolha ou da equipe da 47ª Mostra, mas por que vocês decidiram exibir esse filme?

Lenny Abrahamson: Eu acho que foi ideia da Mostra, e eu achei uma boa ideia, tentar exibir filmes que podem ser difíceis de assistir no Brasil, filmes que não tenham viajado tanto. Adam & Paul, para um filme tão pequeno, foi para alguns festivais muito bons, mas o sotaque [irlandês] fazia com que fosse um filme mais difícil de distribuir no mundo anglófono.

Eu pensei que a gente deveria exibir algo que as pessoas ainda não tivessem visto. Se a gente exibisse O Quarto de Jack, até Frank, seria mais difícil de justificar. Não seria uma grande oportunidade para a audiência.

E.L.: Eu acho que Frank foi provavelmente um dos seus primeiros filmes que a audiência brasileira assistiu, por causa da Netflix.

L.A.: Sim, exatamente. Uma das coisas boas sobre as plataformas de streaming é que elas colecionam filmes que, de outra maneira, seriam difíceis de assistir. Eu fico feliz com esse aspecto.

E.L.: Durante o bate-papo após a exibição de Adam & Paul na Mostra, no IMS, você disse que gosta de trabalhar com personagens que não se enquadram, não se encaixam onde estão. Por quê?

L.A.: Eu sempre achei essas personagens muito comoventes para mim, eu me identifico com elas. Minha vida não está no limite, mas eu encontro semelhanças a esse tipo de condição. Existem algumas verdades sobre pessoas como um todo que nós podemos enxergar com mais clareza quando a personagem está sob pressão, em dificuldades ou desprotegida. Você pode enxergar o que é o ser humano de forma mais clara naquela personagem do que em uma personagem de sucesso, que pode fingir que é o que quer ser.

E.L.: Falando sobre personagens sob pressão, uma coisa que sempre me impressiona, seja no seu primeiro filme, nas séries de TV, todas as obras estão sempre cheias de atuações excelentes, com qualidade e profundidade. Como é o seu relacionamento com os atores no set? Como você enxerga seu papel como diretor interagindo com os atores?

L.A.: Essa é uma ótima pergunta. Primeiramente, eu acho muito difícil responder essa pergunta de dentro do processo porque, para mim, uma grande parte disso é só uma sensibilidade, um instinto para o que é verdadeiro. Algumas vezes, é só um sentimento de que você sabe se algo vai funcionar para a audiência. Eu gosto de pensar: quão pequeno isso pode ser? Quão delicado isso pode ser e continuar sendo claro para a audiência? Isso é um tipo de instinto, e eu não sei de onde ele veio.

Eu gosto muito de trabalhar com atores, e sou fascinado pelo processo da atuação. Eu tento ficar muito, muito próximo aos atores. Depois disso, o que eu tento é fazer algumas mudanças na personagem para trazê-la mais próxima ao ator e trazer o ator mais próximo da personagem. Algumas vezes, não sempre, depois que eu decido um ator para um papel, eu volto para me reunir com os roteiristas e para moldar o papel para o ator, para que, quando você assiste a performance, você sinta que a distinção entre personagem e ator desapareceu.

E.L.: Adam & Paul foi lançado quase 20 anos atrás. Você sente que esse seu instinto mudou muito nessas últimas duas décadas?

L.A.: Eu acho que estou mais tranquilo enquanto estamos filmando. Eu confio mais em mim, e o processo mudou um pouco. Eu falo menos no set do que eu costumava. Eu assisto e tento ouvir e fazer a experiência ser suave, delicada e não muito barulhenta.

Mas eu acho que o instinto é o mesmo. Quando você está trabalhando em um filme, num set de filmagem, todas as pessoas têm um trabalho definitivo. O responsável pela maquiagem está cuidado da maquiagem, os responsáveis pela iluminação estão preocupados com posicionamento das luzes, o cara do som está buscando por ruídos. A única pessoa livre, realmente livre, é o diretor.

Assim que eu falo ‘ação’, eu preciso parar de ser um diretor de cinema e virar só uma pessoa. E, então, eu assisto o que está acontecendo e consigo imediatamente dizer se está certo ou se é verdadeiro. Se você é um membro da audiência do cinema assistindo um filme, você imediatamente sabe se acreditou ou não em uma atuação. Então como o diretor não percebeu? Muitas vezes os diretores estão tão presas no processo de fazer um filme, nas próprias expectativas do que deveria acontecer na cena, que podem se esquecer de perguntar: eu acredito nessa pessoa?

Eu acredito que todos nós temos essa habilidade. Mas é muito difícil usar essa habilidade no contexto de um processo de manufatura de muita pressão, como a produção de um filme. Para mim, a raiz é essa: esquecer tudo que eu acho que sei a respeito deste projeto, esquecer meus planos e, entre ‘ação’ e ‘corta’, ser capaz de só assistir ao ator sentado na sala. Se você consegue fazer isso, você rapidamente consegue perceber o que é bom e o que não é.

E.L. Adam & Paul alcança um ótimo equilíbrio entre humor e algumas cenas bem sombrias. No começo, são diversas cenas engraçadas, e o fim é…

L.A.: Super sombrio.

E.L.: Sim, mas temos alguns momentos esperançosos que são diferentes do resto do filme, em termos de fotografia e de música. Qual foi o processo de escolha por trás disso?

L.A.: Eu sempre me interessei no tom dos filmes. Minha crença e meu instinto, desde cedo, é de que você pode ser bastante solto e livre com tom no cinema. Esse não é um pensamento original: o Modernismo, na literatura, está há cento e poucos anos fazendo isso. James Joyce, no Ulysses, estava escrevendo cada parágrafo em uma voz diferente. Recentemente eu tenho lido Fernando Pessoa, que eu estou adorando. Ele é ótimo, um escritor incrível e um dos grandes modernistas. É essa liberdade para fundir estilos [do Modernismo]. 

Para mim, eu senti que eu poderia brincar com Adam & Paul em termos de estilo. Há momentos que são meio oníricos, como sonhos, e definitivamente há momentos de esperança, mas também há momentos de grande tristeza e desolação. Mas a vida é complexa e rica, e se alguém é muito austero como um cineasta, o filme pode ser sério, as pessoas podem olhar e perceber que é sério, mas eu não acho que isso se aproxima à confusão da vida real.

Para tentar responder sua pergunta de forma mais sucinta, a gente sentiu que trabalhar dessa maneira era mais verdadeiro à vida das personagens do que se tivéssemos seguido um caminho de realismo puro, de comentário social sobre a vida dos dois. É assim que todo mundo enxerga isso. Mas aquelas personagens também são capazes de experimentar alegria, de ter sonhos, de amar e sofrer com a perda. Olhar para eles só como um fenômeno social sombrio seria injusto.

E.L.: Seus últimos dois projetos foram minisséries. Qual a diferença entre fazer uma e fazer um filme? 

L.A.: É um processo mecanicamente diferente, porque você está gravando muito material, mas você não tem tanto tempo [quanto num filme]. Essa é a diferença mais básica. Você tem que filmar rápido, porque não tem tanto tempo gravando uma série de TV em comparação a uma gravação de filme. Para a história, também há a diferença de que, em uma série, você normalmente está medindo a história por um longo período.

Se você tiver a sorte de ter bons produtores e um bom relacionamento com as pessoas para as quais você está fazendo essa série – o canal, a plataforma de streaming ou o estúdio –, se eles te apoiam, então você pode trabalhar de uma maneira muito similar a como se faz em um filme.

Eu acredito que o sucesso de Pessoas Normais venha, em parte, porque ela não parece com uma minissérie. Parece mais como um tipo de filme bem longo, é uma minissérie muito silenciosa e bem lenta. Ironicamente, nós imaginamos que, quando lançássemos a série, os críticos poderiam gostar, mas as pessoas só mudariam de canal, já que temos tantas opções na TV. Eu poderia assistir futebol, por que eu vou ficar sentado assistindo essa série que vai crescendo de forma lenta? Ficamos muito surpresos com a audiência.

E.L.: Todos seus projetos desde O Quarto de Jack, de 2015, foram adaptações literárias. O que você busca em um livro, o que chama a sua atenção para querer adaptar algo para as telas?

L.A.: Essa é uma ótima pergunta, mas eu vou começar respondendo uma versão levemente diferente dela. Eu nunca pensei que iria querer fazer adaptações. Com o sucesso de O Quarto de Jack, comecei a receber vários romances, e foi difícil porque alguns deles eram tão fascinantes que eu decidia adaptar eles antes de escrever algo meu, que eu queria. Alguns eram tão bons, que eu só não podia dizer não. Pessoas Normais levou ao Conversas [entre Amigos, outra adaptação de Sally Rooney]. O que eu estou fazendo agora é um filme original.

Para responder à sua pergunta original, o que eu busco? Eu preciso ser capaz de enxergar aquilo como um filme. Às vezes, quando estou lendo algo, por exemplo, quando li “Room”, de Emma Donoghue, já na terceira página eu entendi o que estava acontecendo e tive o sentimento mais vívido de como esse filme seria e como eu o faria e como aquilo funcionaria na tela. Era um sentimento de que eu poderia imaginar aquilo profundamente para o cinema.

Eu também busco por complexidade das personagens. Os livros que adaptei foram bem sutis. Eu fiz um filme baseado em um romance maravilhoso chamado “The Little Stranger”, de Sarah Waters, que é uma novela gótica, mas também é sobre as coisas pelas quais eu me interessei antes. Não é uma questão de gênero ou de tema, mas um tipo de… eu não consigo explicar, é algo que eu sinto, e então eu quero segurar aquilo, não deixar ninguém arruinar e fazer do meu jeito. Assim começa esse processo obsessivo.

E.L.: O que te chama atenção na escrita da Sally Rooney em específico, já que você adaptou dois livros dela em sequência?

L.A.: O meu jeito de fazer filmes e a escrita da Sally casam, de certa maneira. Ela escreve de forma bem simples. Essa personagem fez isso, esse diz aquilo, ele pensa isso, a linguagem é bem direta, não exatamente literário no sentido clichê de algo com palavras floreadas. Mesmo assim, há uma grande profundidade na escrita. Ela parece estar só olhando para as pessoas e descrevendo o que elas estão fazendo, mas acaba chegando em um lugar poderoso.

Eu acho que meu cinema é similar. Ele parece bem simples, como se você estivesse assistindo as coisas se desdobrando naturalmente, mas eu espero que, quando ele funciona bem, ele cria uma conexão mais profunda.

Nos livros da Sally, para mim, há bastante ar, especialmente em Pessoas Normais e Conversas entre Amigos. Há bastante espaço para só observar essas personagens em seus mundos. Eu acho que foi um bom casamento.

E.L.: Como está sendo sua experiência no júri da Mostra?

L.A.: Está sendo ótima! Eu já participei de muitos júris, e esse é um muito bom porque os membros são bons, pessoas amáveis, divertidas e um grupo muito diverso. Temos pessoas de todo o mundo, com diferentes experiências e histórias. Nos divertimos muito juntos, é um grupo muito caloroso. Eu acho que a palavra em inglês para isso é ‘collegiate’ [como se fossem estudantes universitários]. A Mostra é ótima, todos estão sendo muito amigáveis com a gente e é um festival caloroso.

Eu também tenho muita sorte de ter o consulado irlandês de São Paulo e a embaixada de Brasília envolvidos em me trazer para cá e cuidar de mim aqui. Nós temos uma organização na Irlanda chamada Culture Ireland, que ajuda a levar a cultura irlandesa para o mundo, e eles foram muito bondosos de nos trazer para cá.

E.L.: No que você está trabalhando agora?

L.A.: Eu estou trabalhando num projeto sobre a minha família, especificamente sobre meus pais e sobre o meu relacionamento com meu pai, que morreu há cinco, seis anos atrás. Eu tive uma relação muito importante com ele, que foi mudando e, de certa maneira, ficou mais obscurecida ao ponto que ele foi chegando ao fim de sua vida. Eu tenho tentado entender isso pelos últimos 10 anos, e o jeito, para mim, de entender isso, é contar uma versão ficcionalizada do nosso relacionamento.

O filme se passa em 1979, quando eu estava fazendo 13 anos e começando a ver o mundo de forma mais adulta, ou ver aquele mundo [dos adultos]. É uma história muito pessoal sobre a família na qual eu cresci e, se funcionar bem, eu gostaria de contar outras partes desta história, focando na fase tardia do relacionamento [com minha família], mas antes eu preciso fazer esse filme.

Eduardo Lima é amante amador de cinema e repórter no Le Monde Diplomatique Brasil.