Como o filme de Isao Takahata mostra que olhar pra trás pode nos ajudar a seguir em frente
Por Felipe Parlato*
Nem sempre é fácil deixar a infância para trás; há quem argumente que sequer é necessário. Conveniente, diante de tantas atribulações da vida adulta, talvez. E foi o que fez Taeko, a protagonista do segundo longa de animação de Isao Takahata para o Studio Ghibli, Memórias de Ontem. O filme segue a personagem, então com 27 anos, conforme ela tira férias do trabalho para passar alguns dias no campo, colhendo açafrão na fazenda da família de seu cunhado.
A viagem, quieta e introspectiva, dá um pontapé inicial para que a moça se desconecte da vida caótica em Tóquio, colocando suas próprias escolhas em perspectiva quando vistas através da lente da sua versão de 10 anos de idade. É a partir daí que conhecemos a pequena Taeko, conforme a narrativa alterna entre o desenrolar da viagem e pequenos fragmentos de lembrança, que assumem um traço bem mais onírico e minimalista.
Uma das primeiras coisas que aprendemos sobre nossa protagonista é uma vontade antiga que ela tinha de passar as férias no campo. Enquanto todas as suas colegas têm algum familiar na área rural, a família de Taeko é predominantemente urbana. A ela é dito que esqueça a ideia, e assim a menina o faz. Logo nessa primeira lembrança, são apresentados os dois principais temas presentes em Memórias de Ontem: sensação de deslocamento e desvalorização da cultura rural no Japão.
O deslocamento pode ser observado nas cenas de memórias. Tanto em casa quanto na escola, os dois ambientes onde predominam as lembranças, há uma certa dificuldade da personagem em se manter à vontade consigo mesma.
Taeko vive com o pai, a mãe e a avó, além de duas irmãs: Nanako, a mais velha, estudante de arte e “atualizada com todas as tendências”, e Yaeko, a “irmã inteligente”. Ambas impõem à família certa expectativa quanto ao caminho que a caçula deve trilhar. O bom desempenho em redação é subvalorizado, enquanto as notas baixas em matemática são algo preocupante; e Taeko carregou até a vida adulta a ideia de que aqueles “bons com números” acabam tendo vidas mais bem sucedidas. Sua vontade de atuar reprimida, de certa forma, representa algo semelhante: o caminho individual sendo largado em função de algo que se espera por parte da família.
Na escola Taeko é extremamente tímida; busca sempre agradar a todos a não incomodar ninguém, e é demasiadamente envergonhada. Quando a escola começa a abordar menstruação nas aulas, a menina fica muito ansiosa com a possibilidade de que pensem que ela esteja passando por isso. É um assunto abordado de forma franca, delicada e corajosa, especialmente para uma animação do gênero em 1991.
Em geral, não há grandes acontecimentos na infância da protagonista que vemos retratada. A força vem dos detalhes, que tornam as memórias palpáveis ao espectador, assim como aquelas pequenas coisas que, por alguma razão, restaram na nossa memória dez ou quinze anos depois. Muitas vezes é como se o tempo parasse, conforme processamos junto à menina o que acaba de acontecer. Em um trecho particularmente extasiante, Taeko se permite voar, e o filme se permite um pouco de fantasia. Afinal, que lembrança não contém também um pouco de fantasia?
Voltando um pouco à realidade, percebemos cenas muito mais detalhistas, e didáticas. Fica clara, nos cenários de encher os olhos, uma carta de amor do diretor ao Japão rural. As ações de colher, fabricar corante, semear, dentre outras, são retratadas minuciosamente, de forma a transmitir o caráter quase terapêutico daquele estilo de vida, principalmente para alguém vinda de uma metrópole como Tóquio.
Mas é nas falas até exageradamente didáticas de Toshio, primo do cunhado de Taeko, que percebemos o esforço de Takahata em nos mostrar o valor e o encanto da tradição rural japonesa, que vinha sendo perdida principalmente desde a grande ocidentalização que tomou o país no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Toshio fala sobre agricultura orgânica, possibilidade de harmonia entre o homem e a natureza e, conforme escuta, Taeko finalmente se encontra. E o longa parece querer mostrar como esse estilo de vida cairia como uma luva para muita gente, e o esforço para revitalizar as zonas rurais no Japão continua até hoje.
A mensagem final que Memórias de Ontem nos deixa é de muitas vezes a resposta para certas insatisfações da vida pode ser encontrada ao olhar para trás, não só para a nossa infância, mas também para certos hábitos culturais e estilos de vida antigos, de modo a encontrar paz e harmonia em algo que realmente nos satisfaça.
Na cena final do filme, enquanto volta para a cidade grande de trem, a Taeko adulta interage com a sua versão mais nova e os outros personagens de suas memórias, como que finalmente aceitando a vida que tem hoje, seus antigos sonhos reprimidos. Assim, então, pode seguir em frente.
Sobre o autor: Felipe Parlato é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Busca nas artes perspectivas sobre quem nós somos, de onde viemos, e para onde vamos. E também se divertir um pouco, por que não?
Referências:
Hecht, Roger W. Only Yesterday — Ecological and Psychological Recovery. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/614510
Vida no campo atrai cada vez mais japoneses — DW — 25/06/2020