Em conversa, o crítico Luiz Soares Júnior fala sobre cinema contemporâneo, John Cassavetes e muito mais
Luiz Afonso Morêda
Luiz Soares Júnior é tradutor e crítico de cinema. É ele o responsável pelo blog Dicionários de Cinema, no qual, desde 2007, compartilha suas traduções de textos, escritos pelos mais importantes críticos, sobretudo da França, como Serge Daney, Michel Mourlet e Louis Skorecki. Não seria exagero, portanto, alegar que este canal possui um valor inestimável na formação de críticos e cineastas no Brasil. Colaborou com a “Foco – Revista de Cinema”, e atualmente colabora com publicações como a “Revista Cinética” e o site português “À Pala de Walsh”, além de manter alguns blogs nos quais compartilha outros pensamentos e traduções.
A conversa a seguir foi motivada por um interesse na figura de Júnior, uma pessoa profundamente imbuída no meio do cinema há tantos anos. Num momento de desorientação e desilusão acerca do estado da arte, do cinema e do Brasil, surgiu uma atração por essa figura, dotada de um tipo de conhecimento cada vez mais escasso hoje em dia.
O diálogo, que não diria que chega a ser uma entrevista, aconteceu no apartamento de Luiz Soares Júnior, na cidade de João Pessoa, onde o crítico recifense encontra-se radicado. Falamos sobre os assuntos mais diversos, tocando principalmente no cinema contemporâneo. Contudo, logo ao chegar ao local, minha atenção foi roubada por uma estante completamente abarrotada por uma coleção de DVDs e Blu-Rays, dos quais se sobressaía um Box particular, localizado miraculosamente numa posição em que ficou a nos encarar durante a conversa: era o conjunto da obra completa de John Cassavetes, cineasta que há pouco havíamos decidido ser o tema da próxima edição da Revista.
No início da conversa, pouco antes da gravação começar, Luiz me contava sobre um episódio em que foi vaiado no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, uma das únicas e mais emblemáticas salas de cinema alternativo da cidade. Na ocasião, ele havia feito um comentário negativo sobre “Era uma Vez Eu, Verônica” (2012), de Marcelo Gomes, no debate após o filme.
A Revista Vertovina agradece imensamente Luiz Soares Júnior pela disponibilidade e conversa.
Revista Vertovina: Como você vê o cenário de cinema no Brasil de maneira geral? A gente tava falando de “Bacurau” (2019), do contexto que você falou que foi vaiado na FUNDAJ…
Luiz Soares Jr: Eu estava lendo Hubert Damisch, e ele falou que leu Ferenczi, um psicanalista contemporâneo de Freud, que dizia que o olhar e o orgasmo sexual têm tudo a ver. Ou seja, cegar é uma castração. O cinema para a maioria das pessoas, por ser uma arte popular, uma arte industrial, fala dos fantasmas das pessoas. E as pessoas ficam loucas se você mete o dedo nos seus fantasmas, de uma maneira não lisonjeira para elas. É assim que eu vejo, quanto mais popular uma arte, mais ela fala dos teus testículos, mais ela revela dos teus fantasmas. Te dei o exemplo da FUNDAJ, pois me parece claro isso, não se toca naquilo, porque é o meu fantasma. É uma questão de castração. Você me perguntou o que eu acho do cinema aqui do Brasil ou da crítica?
A gente pode falar das duas coisas.
O cinema do festival de Tiradentes, onde 2 anos atrás eu fui júri, revela um cinema bastante interessante, porque é bastante interessado. É culto, sem ser refinado no mal sentido. É um cinema orgânico que fala das coisas do Brasil; ao mesmo tempo é modernista porque sabe o que tá acontecendo no mundo, então é interessante. Mas não é isso que vai parar diante dos olhos e na cabeça do grande público. O que vai parar é essa tormentosa psicose do cinema publicitário feito pela Globo Filmes. É cinema, pra manter o público é necessário apostar nesse tipo de cinema, mas é uma tristeza porque isso não representa o cinema brasileiro, não fala do fantasma brasileiro, e nem das formas de representação excelsas e eminentes que os festivais tão captando. Não é o mesmo cinema. Há uma esquizofrenia.
Quando você fala da Globo Filmes, é especificamente dela ou dá pra expandir?
Específica e genericamente. Porque a Globo estandardizou, sistematizou, tornou norma aquilo que não era necessariamente norma num cinema popular. O cinema popular dos anos 40, 50, 60, da Cinédia até a Atlântida, passando pela Vera Cruz, tinha coisas muito boas e falava do povo brasileiro. Do que fala a TV hoje? A TV feita no cinema? Fala de um povo sem terra, sem sangue, sem carne, sem origem. Fala da publicidade, aquele texto do Luiz Carlos Oliveira Jr., “A publicidade venceu”. É o que eu sou levado também a concluir. Eu falo da Globo Filmes num sentido genérico, num sentido que eles são os mais famosos e estandardizaram uma linguagem da não linguagem, a linguagem da publicidade. Publicidade não tem linguagem. A publicidade fala a língua do quem — a pergunta da genealogia é nietzscheana, “quem”? É o produtor, é quem paga a publicidade, eles não falam do povo, eles não falam da gente.
O que incomoda é que, por ser uma arte popular, todo mundo acha que sabe tudo que tem pra saber. Às vezes parece que falta a humildade de reconhecer que não se sabe tanto, de respeitar o cinema como uma arte.
Olha, se você quer duas palavras de mim eu vou dizer: modéstia e rigor. Isso é o que falta. Modéstia pra saber se limitar, do finito, histórico, limitado em vários sentidos (limite como uma plenitude, que é uma coisa grega, e limite como uma incapacidade, que é uma coisa bem nossa). E rigor, muito rigor. Isso só adquire vendo filmes e lendo sobre filmes, cultura mesmo. Eu tô falando de cultura no sentido mais estrito, de ouvir os quartetos de Beethoven, de ler Proust, de acumular conhecimento, no sentido arquivista mesmo. Falta isso nas pessoas, elas são muito preguiçosas. E se contentam com essa projeção, projeção na tela de projeção — o cinema é uma bandeira psicanalítica, aquilo projeta teus fantasmas todos —, mas uma projeção masturbatória da imagem bonitinha, o bonitinho sepulcro da publicidade. Não é a beleza mediada, dialética, hegeliana, que passou pelo tormento, pelo horror, pela doença, pela morte, da música elegíaca de um Mozart, por exemplo — que Pasolini admirava, ele que era tão pouco neoclássico, ou clássico. Foi Elsa Morante, uma escritora amiga dele, que fez ele abrir os olhos para a beleza mortuária de Mozart. O classicismo é aquela coisa bela, sublime, suprema, mas que passou pelos detritos todos da finitude, pela morte, doença, pobreza, miséria. É aí que eu acho que entra o rigor, para não sucumbir à autocomplacência. Às pessoas falta rigor, e elas sucumbem à autocomplacência masturbatória dos seus próprios fantasmas. E eu falo em fantasma, mas não há fantasma em arte sem o absoluto rigor na lida com eles.
E o que você tem gostado mais no cinema brasileiro recente? Porque além de uma crise estética, parece haver um problema no sistema também, de como os filmes são produzidos.
Sim, há um sistema como um todo defasado, degradado, essa coisa da publicidade é um modus operandi de se ver e se viver o mundo. O mundo um dia foi visto pelos clássicos, pela ópera, pelo cinema clássico, como uma totalidade ao que o homem tem acesso perceptivo através da ratio da obra de arte, ou da literatura. Hoje o mundo é uma coisa que você pode comprar, alugar, trocar, isso é prostituição.
Um filme que me impressionou bastante, e eu respeito muito a pessoa como criador e como crítico, é a “Máquina Infernal” (2021), de Francis Vogner dos Reis. É uma beleza de filme. George Miller, John Carpenter e Jean-Marie Straub. Muito rigoroso, são três autores muito rigorosos, embora você fale que George Miller faz aventuras futuristas — não interessa o objeto, a questão é a forma de se apropriar dele. “Máquina Infernal” é uma obra prima de rigor, de sadismo, de certa forma. Lembro de um texto do Jean Curtelin, na Présence du Cinéma, “Sadismo e Libertinagem”: é possível abordar um tema sem se restringir ao seu objeto. Ele não tá falando do sadismo do século XIII, da filosofia na alcova, ele tá falando de um sadismo da Nouvelle Vague. É possível fazer essas transposições. O filme do Francis é um filme sádico, no sentido de rigoroso, geométrico quase. E é um filme carpenteriano, georgemilleriano. Vale muito a pena ver e rever, acho que esse filme vai nos dizer muitas coisas daqui a 50 anos.
Uma das coisas que mais me incomodam no cinema hoje é justamente uma falta de economia, que termina sendo uma falta de rigor. Tem curtas universitários sendo feitos hoje com orçamento de 15 mil, 30 mil reais.
Jura? Falta o essencial, falta cultura, saber lidar com os meios. Porque os meios — eu sou um crítico fantasmático mas também materialista, então eu procuro sempre saber da questão dos meios: como você fez esse filme, como você conseguiu o prodígio de fazer com que a ideia se adequasse (aí a concepção da verdade metafísica adaequatio) a essa linguagem limitada pelos meios. Não se põe a questão. As pessoas vão logo para práxis, pra atividade em si, passagem ao ato, como dizem os psicanalistas, mas esquecem de pôr a questão — a questão dos meios, do uso, da interpretação daquilo. Eu acho isso um grande defeito, é como se a atividade crítica fosse só uma faculdade intelectual, da qual você pode usar ou não usar, ou como se houvessem filmes intelectualizados e não intelectualizados. Não, há filmes bem pensados, cujo uso dos meios é consequente, e há filmes mal pensados, com mal uso dos meios. “Máquina infernal” mostra isso claramente. É um filme de terror, de assombro, de uma fábrica mal assombrada, mas ele faz isso com uma economia sublime dos meios, porque ele sabe o que é o sublime.
Conheço algumas pessoas que se incomodam com essa mesma questão e estão de alguma forma se juntando. Esse movimento de se organizar, ainda que seja uma organização diferente do que seria 60 anos atrás, é uma chave possível.
Agora tudo é numa chave mais minimalista. Hoje a gente tem os pequenos movimentos de guerrilha, grupos aqui, ali, falo dos que se salvam pra mim, porque os majoritários em geral não tem cultura sequer pra falar uma frase. Aliás eu acho que essa coisa de muito debate é um mal sinal. Sintoma de que os filmes não foram tão bons. Porque o grande filme deixa você afásico, deixa você sem ter o que falar.
Eu escutei recentemente num debate o diretor do filme dizer que preferia discutir as questões políticas da obra a discutir o filme em si.
O filme tem tudo isso. Mas isso tem que aparecer na forma, porque se não for na forma que vai aparecer, é mais fácil fazer uma tese, muito mais profunda. As pessoas querem puxar pra sardinha delas. É possível puxar pra nossa sardinha sem desnaturar o trabalho fílmico. É possível num plano sequência você descobrir a sociologia, a psicanálise, a economia, mas para isso é preciso estudar mais. As pessoas têm horror à estudar. (Serge) Daney dizia: “ninguém quer ser ensinado”.
Na faculdade a gente percebe que muita gente não gosta de ver filmes.
Em geral as pessoas que não têm muita paciência para filmes, para literatura, são pessoas muito vaidosas, muito narcisistas. Porque para ter acesso à arte é preciso modéstia e rigor. Se você é o centro do mundo, você não vai chegar no mundo da arte. Precisa uma certa abertura, uma certa quebra do fascínio narcisístico de você pra você mesmo. Exige um exercício rigoroso, os exercícios espirituais do Santo Ignácio de Loyola, que a gente encontra os rastros no cinema de (Jean-Claude) Brisseau — no início, em “Céline” (1992), “O Jogo Brutal” (1983) —, o exercício físico que está ligado ao exercício metafísico, que leva a descoberta do eu para além das aparências, para além do narcisismo que impede que as pessoas sejam plenas. Eu tenho a ligeira impressão de que é preciso sofrer para abrir uma cratera para que a pessoa saia de si. O sofrimento é algo indispensável à cabeça.
Eu gosto que, nos filmes de Brisseau, Maria-Luisa Garcia está sempre presente, quase como uma musa, mas nunca num papel explicitamente protagonista.
Porque Deus vem antes. O homem é só um detalhe. Acho que falta um pouco hoje nessa época narcisista essa sacação de que, não só para os clássicos, o mundo vem antes (ou Deus vem antes). O homem tá ali, mas pra trabalhar em nome de uma coisa maior, não pra trabalhar para ele próprio.
Hoje falta muito respeito pela matéria que está sendo filmada.
Exatamente, você tem isso até no cinema maneirista dos anos 70, um cinema que abandona o plano sequência para se dedicar ao trompe-l’oeil, ao artifício. Fassbinder, por exemplo, você vê que para construir aquela mansão de Petra von Kant ele precisou destruir aquela montanha, aquela cratera, lidar previamente com o cenário, trabalhar o cenário. E “O Medo Devora a Alma” (1974), meu favorito dele, que é um filme que se sente a herança clássica, a importância do décor, e da demolição do décor, pra falar de trompe-l’oeil, trompe-l’oeil espiritual. Mas é uma coisa muito complexa falar de maneirismo.
E o que você acha do cinema fora do Brasil hoje, de forma geral?
Tem coisas aqui e lá que me interessam, tipo Jean-Claude Rousseau, Edward Yang (que morreu, mas em matéria de arte continua vivíssimo), Stanley Kwan, que é meio maneirista — diria, pra ser mais rigoroso, meio barroco. É o que me vem à cabeça mais forte. Na França, não gosto muito do Olivier Assayas, não gosto muito dos franceses contemporâneos, acho eles meio enroladores. Mas outro dia eu vi um primeiro filme do Arnaud Desplechin, gostei bastante, um média metragem dele, “La Vie des morts” (1991). Em geral não gosto muito dele não, mas “La Vie” eu gostei bastante. Coisas aqui e ali, né.
Eu queria saber o que você acha desses autores que são quase que indelevelmente cultuados hoje em dia.
Scorsese eu gosto de muito pouca coisa. Eu acho um autor típico de festival. É aquela coisa, é um bom cineasta. Vai dizer que Wong Kar-Wai não é um bom cineasta? Ele fez uma obra-prima que é “Amor à Flor da Pele”. É um bom cineasta. Mas muito deslumbrado com o próprio ego, e com o ego narcisista do próprio público. O que eles fazem é coisa fácil. Eu quero ver é do Hitchcock ser citado, porque ninguém nunca cita, “Under Capricorn” (1949) e “The Wrong Man” (1956), que são os meus favoritos dele. São filmes que falam do tema da troca da culpabilidade do catolicismo e tudo, mas de uma forma muito idiossincrática, muito rigorosa. Falam de “Festim Diabólico” (1948), mas não vão falar do plano sequência em “Under Capricorn”, só os franceses falaram. Preferem o mais fácil.
Lembrei do Pedro Costa falando que parece que a gente tem um entendimento equivocado de que os filmes clássicos, filmes do Ford, do Lubitsch, são fáceis, quando na verdade são filmes muito difíceis. Às vezes até pra entender o que acontece na trama é difícil.
Como são filmes muito codificados, você tem codex de tudo, de campo, de fora de campo, raccord no eixo da câmera, é muito rigoroso, para você fazer passar sua subjetividade você vai sofrer. Costa é um nome que eu acho meritório, eminente de se colocar. Porque ele é desses poucos que faz jus à tradição clássica, sem se perder, nem no maneirismo estéril, a opção dos anos 70, e ao mesmo tempo sem negar o classicismo, a herança clássica. Não à toa ele fez o mais lindo documentário sobre o casal Straub-Huillet, “Onde Jaz o Teu Sorriso” (2001).
E é um grande exemplo daquilo que a gente tava falando, do respeito pelo mundo, da humildade.
É, a modéstia e o rigor. Porque o essencial não é o ego das pessoas, é a história do cinema. Eu fico me perguntando quanto tempo vai durar pra história do cinema esses filmes de Sessão da Tarde. Eu via Sessão da Tarde também, mas na minha época na Sessão da Tarde passava Jerry Lewis. Passava também filme pornô, mas passava Lewis, Hawks, passou “Hatari!” (1962).
Mas a questão dos festivais, você falou que o Scorsese era um cineasta de festival, mas talvez a produção de cinema hoje esteja tão submissa aos festivais…
Por exemplo, as pessoas comparam Scorcese com Abel Ferrara, por causa das origens italianas, do objeto dos filmes, que são thrillers urbanos, muito violentos. Eu acho que não tem condições de comparar Abel Ferrara, dos anos 90, porque esse de agora tá completamente perdido, com Scorsese. Abel Ferrara é modesto e rigoroso, porque Deus passava na frente — como dizem os evangélicos, tô até brincando com isso, Deus passa na frente. Tem uma coisa muito maior no cinema do Ferrara do que o ego do Scorsese, do que as tribos do Scorsese. Você comparar “The Addiction” (1995) a “Os Bons Companheiros” (1990) não tem condições. Ferrara era muito superior. Era, agora ele se perdeu completamente, a Europa fez mal a ele.
O que você acha da Nova Hollywood?
Eu gosto do Terrence Mallick. Já um filme como aquele com Dustin Hoffman que falam muito, “Perdidos na Noite”, filme de 1969, dizem que é a da Nova Hollywood mas é tão ruim que eu nem ousaria dizer isso.
Eu falei porque é o contexto de onde surge o Scorsese, e tem a ver com isso que a gente tava falando do orçamento que ele tem, de um certo glamour que é colocado.
Por exemplo, falando da Nova Hollywood, “Mean Streets” (1973) te antecipa muito dos truques e tropos do Scorsese nos anos 90. Mas é um filme de autor, que ele fala da comunidade, fala dele, então é um filme que merece respeito, apesar de ter muita câmera lenta, aquele final todo, aquela montagem paralela alucinógena. É um filme que me diverte, mas não diria que é um grande filme, mas acho muito divertido. O Mallick eu achava ele brilhante, mas ele se perdeu completamente criando metafísicas que, de finitas, de mortais, de cinematograficas não tem mais nada. Ele se perdeu na própria cabeça. Mas “Days of Heaven” (1978) é um filme maravilhoso, “Badlands” (1973) também. Mas a gente tá se esquecendo do melhor filme da Nova Hollywood, que as pessoas nem citam, que é “The Killing of a Chinese Bookie” (1976), do Cassavetes. Cassavetes pode ser considerado Nova Hollywood também, mais udigrudi.
Eu ia falar dele justamente porque vai ser o próximo tema da nova edição da revista, e eu entrei aqui e tinha esse Box dele me encarando, e é realmente alguém muito interessante porque dialoga muito com isso que a gente falava de uma economia de meios que é muito interessante.
Ali você tem que contar com a pulsão, com o fantasma, porque ele era alcoólatra.
Morreu de cirrose, né.
Morreu de cirrose. Faz parte da economia da genialidade dele o álcool. Tem diretores que são assim, só produzem com o encalço do álcool, da cocaína para Fassbinder. A gente tem que respeitar, cada um sabe onde o sapato aperta. Mas pelo menos dois filmes do Cassavetes são alguns dos meus favoritos de sempre: “The Killing” e “Love Streams” (1984). Acho filmes extraordinários, filmes de uma vida e filmes dignos de uma obra. Ali ele dominou completamente seu objeto, sem deixar de se expor. E como ele se expunha, né. Em “Love Streams” quando ele cai escada abaixo, ele leva um surra por causa da criança; e tinha coragem de se expor, era um ator, um homem bonito, mas se expunha. O que Gena Rowlands se expõe em “A Woman Under the Influence” (1974)… Eu tenho muita admiração, adquiri, não tinha, pelo ator, porque é ele que expõe, o corpo é do ator, é “o dasein sou eu mesmo”, como diz Heidegger. O diretor tá protegido pela mise en scène, pelo aparato, pelo dispositivo, pelo simulacro, mas é o ator que sofre no sentido do pacto crístico. Sofre na pele o que é o filme. Pra mim, eu era totalmente macmachonista, pra mim tudo era mise en scène, hoje eu respeito muito o co-autor do ator, aquele diretor que tem o ator com co-partícipe, co-autor, do seu filme. Eu acho que Cassavetes é um paradigma de tudo que há de melhor no cinema. Cassavetes e Pialat, que são muito comparados. Não vejo muita semelhança não.
Não se conheceram, né?
Não. O Daney fala que no meio do furacão, em Pialat, tem uma calmaria. Em Cassavetes só tem furacão. Um furacão pulsional, somático, sempre, uma coisa que chega às raias da auto destruição. É incrível a coragem daquela gente de se expor daquela maneira. Porque eles podiam ser, segundo os esquemas de identificação mimética que o cinema induz em tela grande sublimemente, eles podiam ser muito mal vistos pela indústria. Ela fazendo uma psicótica, ele fazendo um alcoólatra, e nunca mais conseguir trabalhar na vida. Mas ela [Gena Rowlands] fez filmes com outros diretores, Woody Allen, Terrence Davies, tem um belo filme dela com Davies, que ela faz uma tia velha e cantora. Mas é gente muito corajosa. A modéstia e o rigor são anexos à coragem, que para Aristóteles era a virtude das virtudes. Porque em toda virtude tem que existir um pouco de coragem. Até pra atravessar a rua você precisa de um pouco de coragem, quando você não tomou seu remedinho.
É incrível realmente o que eles fazem.
É um meio muito codificado, cheio de preconceitos, de conceitos, e o cara cria um mundo muito próprio, e sobretudo perversamente, pegando um gênero muito codificado, o neo-noir, o noir da Nova Hollywood (no caso de “The Killing”), e faz um filme completamente esquizo, um filme completamente dele, um sofrimento só dele, um filme de alcoólatra, de psicótico, de quem sofre na veia. Um filme sobre o ator, né. Pra mim toda arte fala de um mistério: o ator é o mistério da identidade, a pintura é o mistério da luz, a música é o mistério da harmonia, cada arte fala de um mistério, ela não desvenda, porque aí ela não seria arte. Ela não revela a essência do mistério, ela mantém o mistério, mas fala dele. “The Killing” é um filme sobre um performer — mas um performer decadente, falido, caído, que é o Ben Gazarra. É um filme admirável. Escrevi um texto pra Cinética sobre os últimos Cassavetes, que são todos filmes sobre performers decaídos. Mas a coragem daquele homem de se expor daquela maneira, e de expor a Gena Rowlands daquela maneira. Ela tenta psicoticamente matar a filha e o marido em “Love Streams”, aquilo são as fantasias psicóticas dela. A pessoa vai lá e se mostra. Falta muita coragem.
É intenso o sofrimento.
É pático. Uma cruz pática. porque haverá fatalmente a contaminação mimética, a contaminação com o sofrimento do personagem. Isso faz parte do trabalho do ator. Não adianta mediação stanislavskiana. Eu acho que quem entendeu bastante essa contaminação pática do ator foi Meyerhold, que Stalin mandou matar, no final dos anos 20. Ele trabalhava o corpo do ator, isso antes de (Wilhelm) Reich, a dicção do ator, a projeção ator, em vários sentidos de projeção. Isso tudo tá em Cassavetes. Um sofrimento imenso na pele, no corpo, na catarse do ator, de fazer um personagem à beira do abismo, sempre. Pra mim se não for à beira do abismo não vai ter graça nenhuma. Fazer um desses meninos narcisistas ricos, bons, belos e nada justos, de que o mundo tá cheio agora, não tem graça nenhuma. Eu fui ver esse “Aftersun” (2022), os dois últimos filmes que eu vi, “Aftersun” e “Bones and All” (2022). Gostei do “Bones and All”, mas o “Aftersun” é um enrolation society danado: pai e filha, truques de travelling, truques de travelling exóticos, truques de panorâmica, uma porcaria. Mas o “Bones and All” ainda tem cinema, ainda achei interessante. É um filme sobre vampiros.
Interessante que a produção hoje em dia parece um pouco menos concentrada, uma coisa aqui, uma coisa ali.
Elas falam da mesma coisa. Eu não desisti do cinema ainda não, eu vejo muita coisa, tenho curiosidade pra ver os novos filmes que lançam, às vezes ainda saio de casa pra ver no cinema. Aqui (em João Pessoa) tem o (Cine) Banguê, de vez em quando tem uma coisa boa, às vezes é uma temporada de horror, não tem nada, aí eu prefiro ver o filme baixado aqui em casa mesmo. Mas assim, é difícil, porque falta modéstia, falta rigor, e falta coragem.
Aos produtores e aos espectadores também.
Mas cada vez mais eles se identificam, parece que o público quer ver mesmo esse cinema publicitário, esse cinema memória da água, lá do texto do Daney falando sobre Luc Besson. Parece que é mais reconfortante, as pessoas não se sentem bem quando são desafiadas por um grande filme não. Até porque, a gente tava falando sobre isso, elas querem falar, a pandemia deixou todo mundo no mutismo, numa afasia, apesar de si, foi sem querer. Então elas ainda tão querendo falar sobre os filmes, e como eu te disse, os grandes filmes, os poucos que surgem, deixam a gente afásico. Não é o que as pessoas estão procurando, o fantasma delas tá em outra coisa, tá no narcisismo. Então elas querem uma coisa que elas possam falar à vontade, falar no seu curso, no seu TCC, e não calar e se deixar cooptar pela grandeza do filme. É difícil, falar do sublime de novo.
(Luiz vai ao quarto e traz um livro que escreveu sobre Kiyoshi Kurosawa)
Você gosta de Kiyoshi Kurosawa? Kiyoshi é outro…
Muito. É um dos cineastas que mais me interessam hoje em dia.
A mim também, eu adoro Kiyoshi Kurosawa. Um cineasta do fantasma com uma infraestrutura clássica. A princípio falar do invisível na arte do ultra visível, o classicismo… Ele consegue, faz muito bem isso. Ele chegou até a fazer uma série de TV maravilhosa, há séries de TV que eu gosto, “Berlin Alexanderplatz” (1980) do Fassbinder, por exemplo. Não vou saber dizer o nome, mas é uma que uma criança era assassinada e dali ele tirava mil coisas.
Eu gosto nele que parece que ele tá o tempo todo refletindo sobre essa dificuldade do cineasta em saber como transpor aquilo que tá dentro de você para matéria, para aparência, para luz.
É a demiurgia, a coragem da demiurgia da arte, você fazer aquilo que não obedece a nenhum pretexto diegético, a nenhum puxa saquismo da plateia, você faz porque você pode. Um cineasta é um demiurgo, o maior demiurgo.
Legal que ele trabalha muito com a história da cidade, com uma geografia.
E tem os corpos dele. São corpos muito especiais. “Doppelganger” (2003); esse corpo burlesco, desse rapaz que volta pra viver em “Permissão para Viver” (1998); o corpo da raia, em “Bright Future” (2002), que queima, que você põe em risco sua saúde. Tem sempre um corpo, o corpo da médium em “Sessão Espírita” (2000), que ela vê coisas que só ela pode ver e no final aquilo se torna um conto moral digno de Dostoievski, de Shakespeare, tem uma cena na floresta bem macbethana, que eles enterram uma criança. Eu acho um cineasta admirável.
Lembro dele falando que aprendeu mais sobre filosofia e sociologia vendo filme americano de ação dos anos 80 do que na faculdade propriamente.
Você viu o filme dele sobre King Kong e Nosferatu, “O Guarda do Subsolo” (1992)? Ele pega tanto o King Kong quanto o Nosferatu e faz uma anamorfose num prédio de escritórios no centro de Tokyo. Eu falo em Nosferatu porque você vê a reação no rosto da pessoa no monstro que chega, e King Kong porque ele é um serial killer imenso, que lembra muito prédios de escritórios tal o Empire State Building. E você viu esse último dele, “A mulher do Espião” (2020)?
Ainda não. Falta tempo, é muita coisa para ver. Essa febre de Letterboxd hoje em dia te coloca numa corrida para ver filmes. Eu acho melhor economizar, pra ver bem. Digerir mesmo.
Até porque só na revisão que o filme vai se revelando, pouco a pouco. Eu confesso que já fico um pouco neurastênico com essas pessoas muito jovens cuja grande opinão sobre um filme é “porra, que travelling do caralho”, “que raccord filha da…”. Quando começam os palavrões para falar da técnica, o gosto pela técnica em si, aí já começa a me irritar um pouco. Porque não é que o filme seja só a história, só a mensagem, ele é o meio termo entre a história e a técnica. Mas se você se concentrar em só um dos dois, você está no mal caminho, se alienando.
Essa reação que você falou parece estar bem presente inclusive entre os realizadores hoje em dia.
Sim, os deslumbrados. Quanto mais difícil for para executar o plano, mais meritório o filme é.
Coisa do Nolan, por exemplo.
Você viu “Duna”?
Ainda não. Não tive saco.
É o Villeneuve, mas eu não vi “Incêndios” (2010), que um ou outro fala bem, não sei, eu só tentei ver “Duna”. Não consegui chegar até o final. Quando eu não consigo é porque realmente não desce. Eu vi o “Nope” (2022), do Jordan Peele. Gostei muito. Aí corri pra ver os outros dele que eu não conhecia e gostei também. Mas o “Nope” eu gosto muito de alguma coisa ali. Eu vejo ali uma coisa muito panfletária da negritude que me incomoda. Eu sou de esquerda, eu sou a favor das cotas, então você nem pode me colocar contra a parede aqui pra dizer que eu sou bolsominion. Acho que esse panfletismo raso ameaça naufragar o filme, mas a sequência toda do macaco matando aqueles personagens na série, e a abdução da plateia pelo monstro, são digna de ontologias. Muito cruéis, o que eu acho um elogio. Crueldade na veia, uma frieza, uma sobriedade, uma coisa de ir até o fim, até o fundo, de não respeitar a vovó que tá vendo o filme, a criancinha, um respeito pela forma física. E pelo sublime. É um filme basicamente sobre o sublime, na forma da animalidade, sobre o retorno da animalidade como o sublime, é admirável. Essa sequência que forma um filme dentro do filme, quando tem o flashback do macaco, e abdução da plateia pelo monstro, pela máquina, é um E.T, que na verdade é um animal, territorial, que tá sugando todas as vidas daquela face da terra. E ele filma muito coerentemente, com muito empenho cruel. Me lembrou Brisseau, dos bons tempos.
Grande elogio. Pegando o gancho, você viu o novo “Avatar” (2022)?
Eu não vi o último, mas vi o primeiro. Não é muito meu estilo não. Aliás eu tive até que escrever sobre Cameron, em “À Pala de Walsh”. Eu escolhi pra escrever sobre o “Alien 2” (1986) que eu acho interessante. Mas “Avatar” é muito anime pra mim, eu tenho que ter a coisa do corpo, da fotografia. Eu nasci com os pés tortos. Até os 14 anos eu tinha os pés tortos, fiz 2 cirurgias. Então pra mim o cinema sempre foi o acesso ao real que eu nunca tive. Não podia brincar, não podia correr muito, porque podia cair. E todo filme de animação, ou quase animação, stop motion, eu não me atraio muito por causa disso, não tem a foto, o corpo, o sôma, o real. Eu tenho dificuldades — que devido à profissão eu tenho que vencer, se tiver que escrever eu vou escrever, hoje eu sou um profissional, escrevo sobre qualquer coisa. Eu vou ter que ver. Eu nem sei se tá passando ainda no cinema.
Não só está, como no Shopping ele ocupa 80% das salas.
Ah, então eu acho que vou deixar pra ver baixando (risos).
Eu lembro ano passado quando eu vim pra João Pessoa no final do ano, das 10 salas que tinha no Shopping Manaíra, 9 estavam passando o filme do Homem-Aranha, algo terrível.
Jura? Nessa onda eu vi “Batman” (2022), com Robert Pattinson e gostei. Pra mim faltou mais crueldade. Eu nunca vi um filme com potencial demoníaco tão interessante jogado fora, porque ele não mata ninguém. Aquele final, todo mundo se salva. Pra mim a crueldade é essencial pro cinema. É a razão da minha paixão pelo Carpenter, que a princípio estaria bem distante dos meus gostos europeizados e tal, mas eu amo Carpenter, porque se ele tem que matar uma criança, ele mata a criança. É aquela coisa do Hitchcock, se tem uma bomba no colo de uma criança num carro, essa bomba vai ter que explodir, porque é imoral que não exploda. Se você chegou até esse ponto, você tem que ir até o fim. Eu acho que “Batman” recua, em nome do bom gosto, em nome da plateia, juvenil, materna, e ele não vai até o fim da crueldade que eu esperava do filme. Acho o personagem do Charada ótimo, gosto do Paul Dano, apesar de achar ele muito do Método, um pouco demais pra mim, mas acho que só isso que me incomodou, não ir até o fim em matéria de crueldade. Tem uma ou outra cena mais forte assim, mas quem não vai até o fundo não merece piedade. Cinema é uma arte da crueldade, pra mim é assim. Inclusive não precisa ser uma crueldade do exploitation, não é o “Massacre da Serra Elétrica” (1974), um filme como “A Cortina Escarlate” (1953), do Alexandre Astruc, é extremamente cruel. É um média, a história de um conto amoroso galante entre um rapaz e uma moça no século XIX, e do nada ela tem um infarto fulminante e morre.
O que mais me interessa dentro da produção de Hollywood hoje é a contravenção, que tem num Verhoeven dos anos 90 por exemplo.
Os contrabandistas. Como diz Mourlet, são aqueles que vendem cocaína como se fosse açúcar. É uma ótima imagem. Verhoeven é por aí. Mas não gostei muito do “Benedetta” (2021) não, achei fraco, meio óbvio ululante.
Tem uma crítica que é feita a ele, e ao Cronenberg por exemplo, que parece que chegaram num ponto que foram incorporados pelo sistema europeu, e aí os filmes são castrados.
Esse “Crimes do Futuro” (2022) lembra um Cronenberg dos anos 80, mas Cronenberg dos anos 80 é muito superior. Aí foi o que o Cronenberg de hoje pôde tirar dos anos 80. Mas é muito pouco em relação a “Videodrome” (1983), por exemplo. Comprei há pouco o Blu-Ray, tô pra rever.
Gosto muito de “Existenz” (1999). “Crash” (1996) também.
“Crash” eu tenho aqui.
Eu vi.
Você também tem um olho hein… (risos) Eu nos anos 2000 importava muito, vi todo Fuller importado, Fassbinder, quando o dólar ainda tava num preço legal.
Mas não vendia aqui não?
Já vendia muita coisa, mas o que eu queria não tinha ainda não. Fassbinder não tinha nada aqui no mercado brasileiro. Eu lembro que eu tinha um VHS, o primeiro VHS que eu tive, vi “A Terceira Geração” (1979), que ainda é um dos meus filmes favoritos dele, sobre terrorismo. E aí achei, tinham duas lojas em Recife de vídeo, uma na Visconde de Suassuna, e uma no terceiro andar do Cinema São Luiz. Tinha muita coisa. Nunca mais fui achar esse filme, fui achar na França pra comprar, já em DVD, e agora em Blu-Ray. Eram coisas esquisitas, tinha a Continental, que era pirata mas tinha tudo que a gente queria, então a gente comprava, tinha Cocteau, tinha Dreyer, só a Continental lançava isso no Brasil, então a gente comprava. Todo Buñel, Buñel mexicano, que uma vez quase morri, tava passando no MISP ali na Rua da Aurora, aí eu planejei uma “gazeta” de aula durante 3 meses, que ia passar em abril, eu planejei a partir de janeiro. Fui correndo pra aula de digitação, quebrei o fêmur. Eu nem tava ligando pro fêmur, o que eu tava puto é que não ia conseguir ver os filmes mexicanos do Buñel. Mas aí é isso, hoje eu tenho todos. Não pode desistir na primeira tentativa.