Como a dinâmica de desejo de Elaine, protagonista de The Love Witch, ilustra os perigos de amar como mulher em uma sociedade patriarcal
Por Sara Andrade
A ideia de falar sobre mulheres no cinema me fez pensar imediatamente em Anna Biller e seu icônico “The Love Witch” (EUA), de 2016. Afinal, Anna Biller não apenas dirigiu o filme de forma independente como assume também os impressionantes créditos de roteiro, produção, edição, figurino, decoração e cenário, e se utiliza de um visual marcante que mistura contos de fadas e horror vintage para falar sobre o que é ser mulher e buscar amor em um mundo de doutrina patriarcal. O filme é estrelado por Samantha Robinson como Elaine Parks, uma bruxa moderna que faz uso da magia para fazer os homens se apaixonarem por ela, com resultados desastrosos.
“Mulheres que amam são perigosas”, essa é a máxima explorada por Laure Adler e Élisa Lécosse em seu livro de mesmo nome. Se pensarmos em Elaine, a protagonista que em sua obsessiva e inconsequente busca por amor deixa por onde passa um certo rastro destrutivo, essa frase parece fazer completo sentido. Mas o que Laure, Élisa e Anna Biller querem nos dizer com isso?
Elaine é movida e enlouquecida pelo desejo que talvez seja o mais incentivado a mulheres — e quem sabe até o único realmente permitido? — dentro de uma estrutura patriarcal: o desejo de ser desejada (pelo homem). O desejo de servir ao male gaze — termo cunhado por Laura Mulvey em seu ensaio “Visual Pleasure and Narrative Cinema” (Prazer Visual e Cinema Narrativo) de 1975, no qual aponta que mulheres em filme são tipicamente objetos, e não donas , do olhar, uma vez que no controle da câmera está geralmente um homem branco heterossexual, assim como o público alvo da maioria dos gêneros de filme.
É com essa estrutura do olhar misógino, do controle do desejo feminino que Anna Biller brinca durante todo seu longa de estética hiperfeminina.
“O desejo da mulher sempre foi percebido, e em todas as latitudes, mais forte, mais fascinante, mais misterioso que o desejo dos homens” […] Por seu poder sexual e sua inteligência do coração, a mulher pode, entregando-se a quem ela escolheu, capturá-lo nas armadilhas de seu desejo e torná-lo igual” (ADLER & LÉCOSSE).
Poucas coisas são tão assustadoras ao ser humano quanto o desconhecido. Se pensarmos que, para a psicanálise freudiana, o desejo feminino se encontra justamente no campo do desconhecido, um “continente obscuro”, é possível começar a compreender a origem de tamanha apreensão — especialmente dentro de uma estrutura social de soberania masculina. Qualquer demonstração feminina de autonomia amorosa e reconhecimento do corpo e desejo é razão para o patriarcado tremer as pernas, e por isso devem ser controladas e condenadas. Em tempos feudais, por exemplo, o imaginário feminino transitava entre dois extremos com a imagem da bruxa — a figura que representa essa maior autonomia dos desejos, e justamente a criatura a ser temida, condenada — e a mulher silenciada e submissa. Anna Biller torce e retorce esses dois pólos com Elaine, que diz ter morrido ao sofrer uma grande desilusão, e “renasce” como bruxa após entrar em um grupo ocultista.
Elaine enquanto bruxa aprende que deve usar seus mais fortes poderes, a sexualidade e feminilidade, para conquistar aquilo que mais almeja: o amor de um homem. Ela aprende a se moldar à perfeição para ser o ideal objeto de desejo masculino, acreditando que assim concretizará seus desejos próprios e chegará à autorrealização.
A grande ironia (perfeitamente intencional) é o Grande Sarcedote, líder do coven — um clã centrado na figura da “deusa” — ser um homem branco hétero, que em uma cena emblemática ensina a duas jovens aspirantes a bruxas que seu maior poder enquanto mulheres está em sua sexualidade, soando como uma “personificação viva do patriarcado” (ARRO). Elaine e outras personagens como Barbara, a Grande Sacerdotisa, “nem mesmo percebem que seu female gaze nada mais é do que o male gaze sob o disfarce de terminologia pró-feminista.” (ARRO).
A armadilha de ter o desejo moldado pelo olhar e controle masculinos é que é uma fórmula fadada ao fracasso, uma estrada ilusória sem ponto de chegada. Afinal, quando Elaine é bem sucedida em seu enfeitiçamento e se torna a “definitiva fantasia sexual”, adorada pelas mãos e olhos desses homens, ela é imediatamente tomada por um sentimento de repulsa. Nunca é o que ela espera e o que realmente desejava — afinal, não é uma adoração na qual esteja presente amor real e respeito humano. “A objetificação exclui amor” (ARRO).
Enquanto Elaine parece perfeitamente moldada pelo male gaze, o retrato dos homens é, por sua vez, realizado fora desse olhar que tanto perdoa e lisonjeia o masculino. A natureza forte e resiliente tão comumente associada à figura masculina é, aqui, quebrada com os personagens aparecendo essencialmente infantis e frágeis, em que qualquer recusa ao seus desejos ou qualquer assertividade feminina são suficientes para despedaçar suas realidades e até suas existências. E o que os destrói, em última análise, é serem obrigados a lidar com suas próprias emoções — habilidade que mulheres habitualmente aprendem a desenvolver, por mais doloroso e solitário que seja.
E cada vez que Elaine falha em sua missão de encontrar “amor verdadeiro” e se perde dentro da névoa do desejo de ser desejada, mais ela se distancia de empatia e compaixão — se tornando verdadeiramente perigosa. É justamente por se afastar de sua autonomia e desejos autênticos, um caminho regido por dores e traumas, que Elaine se torna fatal.
Justamente por isso o elemento mais mortal talvez seja, na verdade, aquele tão vendido a nós mulheres como a chave para a felicidade e realização eternas: o amor de um homem. Quero dizer, essa versão de amor que se torna o vício de Elaine, que não passa de uma ilusão misógnia criada por homens para homens — e que não leva em consideração a autonomia ou os desejos das mulheres.
“O tipo de amor que existe dentro das páginas de contos de fadas e onde é melhor ser deixado porque se assemelha a uma história de terror quando trazida à vida” (ARRO).
Mulheres que amam são perigosas pois quando se tornam conscientes de seus próprios desejos — e, principalmente, quanto mais consegue deslocá-los do olhar masculino — mais difícil se torna de ser controlada, ameaçando as estruturas de desigualdade existentes há tanto tempo entre os dois gêneros. E mulheres que amam são perigosas quando consomem a droga mortal do amor misógino esvaziado em male gaze — perigosas, na maior parte, para si próprias.
Sara Andrade é formada em Comunicação Social/Cinema há já alguns anos, apaixonada por arte e filmes do trash ao clássico, viciada em ler teses e artigos sobre cinema de horror, bebe muito chá e finge que escreve de vez em quando.
Referências:
OLIVEIRA, Sílvio Tony Santos & SILVA, Juliana Andréa Cirino & RODRIGUES, Hermano de França. Desejo e Prazer: a Feminilidade e o Gozo à Luz da Psicanálise, 2017.
ADLER, Laure & LÉCOSSE, Elisa. Les Femmes Qui Aiment Sont Dangereuses, 2015. Ed. Flammarion.
ARRO, Jyn. Feminist Film Analysis: The Love Witch, 2020. (https://jynarro.com/2020/10/30/feminist-film-analysis-the-love-witch/)