“Nem uma arte, nem uma técnica: mistério”, sobre a sonorização dos filmes de Man Ray | 47ª Mostra

O retorno à razão (Foto: Divulgação/47ª Mostra)

A concepção de uma trilha sonora garante novas releituras dos filmes-poemas de Man Ray 

Pedro A. Vidal

Já tendo composto a trilha sonora de alguns de seus próprios filmes, como Limits of Control e Only Lovers Left Alive, Jim Jarmusch, se junta a Carter Logan – seu parceiro na banda de noise rock SQÜRL – para sonorizar os principais filmes de Man Ray. A concepção de uma trilha para L’Étoile de Mer, Emak-Bakia, Le Retour à La Raison e Les Mystères du Château du Dé representa não só uma nova experimentação na carreira da banda como uma garantia de novos tons aos filmes-poemas de Man Ray.

Urge a necessidade de um regresso ao cinema mudo e a sua ressignificação. Por mais antiquado que isso soe, a reflexão do dispositivo imagético e sonoro processado de forma individual possibilita novas técnicas de montagem e novos desdobramentos da linguagem cinematográfica. A estilização surrealista, característica dos filmes de Man Ray, somada à abordagem sônico-experimental da trilha permitem um alcance potencializado de L’Étoile de Mer ao poema sob o sono hipnótico de Robert Desnos. 

A nova ambiência sonora desses filmes já estava oculta nas imagens de Man Ray, mas há uma tradução nas frequências dissidentes de Jarmusch que clarificam essas imagens e as tornam audíveis. A tradução permite a reinterpretação da obra de arte em novos desdobramentos estéticos e em experimentos com a linguagem. Enquanto mudos, os filmes de Man Ray nos inseriram em vidros de aquário, contemplando prismas oculares hipnóticos; sonorizados dessa forma, os poemas visuais do realizador trespassam a própria imagem e alcançam seu ápice poético. 

Desses quatro filmes, é característica de Man Ray a alteração extrema da imagem. Para o realizador, ela é plástica, um elástico estendido ao espaço-tempo. Com a clarificação sonora de Jarmusch é possível estabelecer algumas conexões e reestruturações ocultas no cinema do surrealista

L’Étoile de Mer e Les Mystères du Château du Dé são filmes de signos; Emak-Bakia e Le Retour à La Raison são filmes de elementos. Com a permanência do raccord entre todos os filmes, os da primeira categoria servem às delimitações mundanas de um dinamismo moderno, nas representações dos avanços industriais pela Europa por exemplo; e das coisas que tangem a brevidade da vida nas alusões ao amor e à morte. Os da segunda categoria se reservam às puras intervenções da textura material imagética e das características pictóricas dos objetos, alcançando até mesmo um certo pioneirismo na técnica da animação. São filmes que estudam e objetificam as questões puras da experimentação poética visual, beirando ao concretismo, como nos dois planos fixos finais de Le Retour à La Raison: o girar de um quadro xadrez e a exposição de um corpo nu feminino.  

Les Mystères du Château du Dé talvez seja a articulação máxima entre a aliança das modulações radiais da trilha de Jarmusch e da atmosfera poético-surrealista de Man Ray. O filme abre com dois homens encapuzados seguindo a estrada em um veículo automatizado, típico road-movie jarmuschiano. Os pratos incandescentes e as guitarras distorcidas remetem à capa do Goo de Sonic Youth. 

Mas, nos filmes de Man Ray, “são as portas de Paris que se abrem ao desconhecido” – aparentemente, Jacques Rivette passou por este filme antes da realização de seus primeiros curtas e de seu longa de estreia, Paris Nous Appartient. Ao chegarem ao seu destino, a câmera vaga (antes da Nouvelle Vague) em busca de corpos vazios e paredes sublimadas. Somados ao dedilhado da guitarra, os movimentos da câmera atingem uma beleza harmônica, como no trecho da piscinéma, em que corpos se deleitam ao turbilhão da água em preto e branco – por aqui também passou um jovem Jean Vigo antes da realização de Taris. Esses movimentos também se aproveitam de uma inocência improvisada da descoberta do aparato cinematográfico, como no trepidar intencional da câmera na sequência inicial da estrada. 

“Nem uma arte, nem uma técnica: mistério”, essa frase de Godard no capítulo Fatale Beauté das Histoire(s) du Cinéma se enquadra facilmente a uma definição do cinema surrealista. O retorno ao primeiro cinema e a sonorização da era muda possibilitam as intensificações dos enigmas que se resguardam nas entrelinhas dos filmes de Man Ray. É possível aprender muito com a escuta do silêncio e seu preenchimento.