O histórico e icônico relacionamento sáfico no filme de Adélia Sampaio faz suas críticas às…

O histórico e icônico relacionamento sáfico no filme de Adélia Sampaio faz suas críticas às instituições brasileiras vigentes na época e agora

Por Juliana Hipólito*

Amor Maldito (1984) traz, na superfície, a história do relacionamento de duas mulheres sáficas, Fernanda, uma empresária, e Sueli, uma ex-miss. O primeiro longa dirigido por uma mulher negra no Brasil não traria uma narrativa menos importante que o título que carrega consigo: o romance é interceptado pela lesbofobia em diferentes níveis institucionais — a família, o Estado e a religião. Então, através de elipses temporais que não nos permitem de fato mergulhar na relação de ambas, a trama se passa quase que integralmente no tribunal que julga Fernanda por homicídio após o suicídio de Sueli.

Na sua construção imagética, também são enfatizados esse poder das instituições supracitadas e o domínio que elas têm no julgamento do que até então era conhecido como “homossexualismo”. Pode-se falar, por exemplo, do enquadramento em contra-plongée em que são mostrados o juiz e, acima deste, um Jesus crucificado. O interessante desse plano é o foco não somente na falta da laicidade do Estado brasileiro, mas como o que está em jogo nesse tribunal não é a justiça em si, mas os valores conservadores propagados através da religião.

Enquadramento no maior estilo “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Outro ponto é o plano cansativamente repetido do pai de Sueli, um pastor, também responsável por expulsar a filha de casa e até mesmo abusar sexualmente dela, olhando para Fernanda, condenando-a. O jogo de foco aqui empregado, passando do pai de Sueli para a amante desta, denota como a família, segundo os valores tradicionais e conservadores que foram determinantes para o suicídio da personagem, vem em primeiro lugar. Em segundo lugar, vem aquilo que representa quem ela era ou gostava, sendo, no caso, simbolicamente colocado como Fernanda.

Foco totalmente utilizado no pai de Sueli.
Após alguns segundos, o foco vai para Fernanda, concretizando a crítica de Adélia Sampaio.

As pouquíssimas cenas de sexo, que não chegam a durar 5 minutos, não são fetichizadas como aos olhos de um homem (male gaze). Os toques e olhares entre as duas mulheres são tão suaves quanto a própria transição que acompanha a passagem dos planos dessas cenas, os quais, por sua vez, são longos o suficiente para mostrar a existência de uma forte conexão entre as duas personagens, mas curtos o suficiente para não entregar ao espectador uma perspectiva fetichista, irresponsável e masculinizada.

O fade, em conjunto com a sobreposição de planos, causam a impressão não somente de intimidade entre Fernanda e Sueli, como também o impacto de que era um relacionamento idealizado e praticamente onírico para ambas as personagens, mesmo com todas as dificuldades afetivas e institucionais.

Exemplo de sobreposição de planos em uma das cenas eróticas.

Entretanto, isso não foi o suficiente para que o filme não fosse categorizado como pornochanchada — numa fase do cinema da Boca do Lixo em que de fato já havia maior apelo ao pornográfico. Segundo a própria Adélia Sampaio em entrevista ao site Catarinas, a exibição de Amor Maldito foi fruto de uma negociação com um exibidor que só passaria o filme caso a cineasta consentisse “travestir o filme de pornô”, reservando-lhe duas salas do circuito.

No entanto, durante a segunda semana em cartaz, o crítico Leon Cakoff assistiu ao longa e, justamente por abordar questões sociais de extrema importância — que se fazem relevantes até os dias atuais — , se indignou com a classificação inadequada e escreveu uma crítica sobre o caso. Depois disso, o filme melhorou seu desempenho nas bilheterias.

O filme, baseado em fatos reais, possui uma cena icônica na qual Fernanda, em sua última chance de se defender para o júri, profere um discurso tocante. Ela diz que é “o outro lado da moeda, o lado falso” e que os insultos disseminados contra ela não se aprofundam em seu sangue. Ela é uma mulher assumida.

Seu veredicto só é revelado na última cena, na qual ela caminha em meio a um cemitério e a narração em off diz que ela havia sido absolvida das acusações. No entanto, apesar do resultado final positivo para Fernanda, não é como se ela estivesse realmente liberta dos julgamentos da sociedade e suas instituições, sobretudo após se submeter a tantas humilhações. Adélia Sampaio nos provoca, pois afinal de contas esse não é um final feliz. Fernanda, assim como as mulheres sáficas que representou e permanece representando, ainda são vistas como o outro lado da moeda, subversivas, passíveis de xingamentos e vítimas de preconceitos.

O enquadramento que a mostra através de grades de uma janela explicitam como ela está verdadeiramente aprisionada em sua cabeça, por causa do luto que está enfrentando naquele momento, e também representa o desejo da sociedade de deixá-la encapsulada, reclusa, e não mais apresentar um perigo devido à sua sexualidade. Então, o espectador, no auge de seu voyeurismo, por ver Fernanda até vomitar perdida em seus pensamentos sombrios e lutar sozinha contra todas as acusações, sempre a observa como um animal que supostamente deveria estar enjaulado.

Nos momentos de pausa no julgamento, Fernanda sempre é vista pelo espectador por meio dessas frestas.

Os papéis de mulheres que gostam de mulheres no cinema sempre demarcaram a inexistência de representações fidedignas, seja pela exacerbada sexualização de suas relações, de forma que se configurasse como um deleite para os homens, seja pela quantidade assustadora de finais trágicos, incluindo o de Amor Maldito. Embora o longa tenha sido o primeiro a discutir a lesbianidade com maior decência e profundidade, sendo igualmente relevante pela crítica que faz, também foi fruto de sua época no que diz respeito ao seu fim. Entretanto, isso não faz com que ele perca sua historicidade, sendo um marco para a história do cinema brasileiro que, devido à sua adaptação à contemporaneidade, deve sempre ser revisitado.

*Juliana Hipólito é estudante de Cinema e Audiovisual pela ESPM. No que tange ao cinema, gosta de fazer análises semióticas e pensar na sétima arte como a linguagem artística mais poderosa, pois abarca um potencial de articulação de massas e de disseminação de soft power.

Referências

CATARINAS. Adélia Sampaio e o pioneirismo cinematográfico de Amor Maldito. Disponível em: https://catarinas.info/adelia-sampaio-e-o-pioneirismo-cinematografico-de-amor-maldito/. Acesso em: 24 jun. 2022.

CINE SAPATÃO. Cine Sapatão em casa: o filme Amor Maldito (1984), de Adélia Sampaio, 1h05min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MFqQyy7d428. Acesso em: 24 jun. 2022.