O longa de Victor Erice propõe, de maneira intimista, o cinema como forma de reconexão ao passado
Felipe Parlato
Fechar os Olhos, que estreou este ano na 76ª edição do Festival de Cannes, é o primeiro longa-metragem do espanhol Victor Erice em 30 anos, sucedendo o docudrama El Sol Del Membrillo, de 1992. O filme acompanha o escritor e diretor de cinema Miguel Garay (Manolo Solo) que, há muito aposentado e fora dos holofotes, é compelido por um programa de TV sensacionalista a reavaliar um dos momentos-chave de seu passado: o desaparecimento, anos antes, da estrela de seu último filme, Julio Arenas (José Coronado). Arenas, amigo pessoal do diretor, deixou o set de filmagens após um dia de gravações e nunca mais foi encontrado. O filme permaneceu incompleto. A mística por trás das circunstâncias do desaparecimento é o que conduz o protagonista a revisitar seu passado, velhas memórias e, posteriormente, tentar reavivar a memória do amigo, encontrado em um asilo após a repercussão do programa.
É uma premissa que poderia facilmente cair em uma exploração simplória do mistério. O cineasta parece ter essa consciência, expondo de cara seu “fator tablóide”, na forma da escorregadia apresentadora do programa. O filme até explora as circunstâncias do desaparecimento de início, mas logo esse deixa de ser o interesse principal. Para o cineasta fictício, o reencontro com o velho amigo é uma forma de se reaproximar de uma época da sua vida que havia deixado para trás, junto com o filho morto, o divórcio e os velhos romances.
Não há pressa nos diálogos. Cada conversa do protagonista com alguém do seu passado é uma partícula a compor a reconstrução dos anos dourados, de quem o amigo um dia foi e do que pode ter acontecido com ele. A cena em que Lola, amante em comum de ambos os amigos, toca no piano uma música que costumavam ouvir juntos, é um dos maiores exemplos disso. Ali, o único objetivo é a conexão real com um passado trágico e fugidio. Os cenários calmos e bucólicos também contribuem para essa introspecção: a plantação onde Miguel trabalha, o asilo gerido por freiras ou mesmo o sebo onde o escritor acha perdido um livro seu, que apesar de ser em um calçadão, é pouco movimentado. Há poucos planos mais abertos, que, quando aparecem, estão lá para reforçar essa ideia. Quando o protagonista recebe a notícia de que o amigo foi encontrado, constrói-se nele uma fé inabalável em reacender uma fagulha de memória do ator, que apesar da demência e de não reconhecer uma pessoa sequer, guarda consigo uma fotografia usada no filme inacabado. Uma última exibição dos rolos do tal filme bastariam?
Erice parece ficar entre a fé e o ceticismo, e a determinação de Garay é contraposta pelos outros personagens do filme. Max Roca, montador completamente apaixonado por cinema, topa a empreitada apenas em respeito ao amigo (“Você não sabe que os milagres morreram junto com Dreyer?!”). A metalinguagem é evidente aqui, aparece de maneira não tão sutil — um filme sobre um cineasta aposentado feito por outro próximo disso.
Arte x artista, imagem x memória
Nesse aspecto, o longa traz ressonância de obras como Ulysse, de Agnès Varda. No curta-metragem, a cineasta parte de uma fotografia tirada por ela para pensar onde uma imagem, capturada anos antes, tem lugar no presente. Ela conversa com os dois homens que servem de modelo para a foto. Para eles, a imagem pouco reflete o momento da vida em que estavam. A partir disso, o filme comenta tanto sobre a capacidade da imagem de evocar um tempo passado quanto, no sentido inverso, o poder imagético da memória em si.
O primeiro caso pode ser observado no início do longa, que abre com um trecho da produção fictícia de Garay. Nela, um rei contrata o personagem de Arenas para encontrar sua filha, de paradeiro desconhecido e cuja única lembrança é uma pequena fotografia (aquela mesma que o ator guardou). Seu único desejo, antes de morrer, é poder vê-la pessoalmente uma última vez. Concretizado o encontro, a fantasia imagética é realizada e o rei, enfim, morre. Aqui, a imagem é semelhança da realidade. De volta ao universo de Julio Arenas, essa expectativa é quebrada — quando exposto a uma foto de si mesmo ao lado de seu melhor amigo, a antiga estrela não reconhece nem o cineasta, nem a si mesmo.
Mas a memória, mesmo que às vezes opaca, tem seu poder imagético. Antes de reencontrar Júlio, Garay, contaminado por sua imaginação romântica de contador de histórias, cria para si a própria versão do que teria acontecido no dia do desaparecimento. Essa versão, apesar de imaginária, carrega traços simples da individualidade do amigo, contido em pequenos gestos, como o de tirar os sapatos. Quando mais adiante o ator, já sem memória, tira seus sapatos, a experiência ficcional passa por uma pequena validação, mostrando que — para além da máxima já batida de que “a vida imita a arte” — a arte pode encontrar na realidade seus traços mais singelos.