O Senhor dos Mortos: Cronenberg frente à vida

Em ‘O Senhor dos Mortos’, Cronenberg tece o vazio a partir do excesso, a partir de coisas grandes demais para sequer fazerem sentido, a partir da superficialidade, da futilidade

Felipe Palmieri

A imagem de si mesmo diante da morte. É uma frase que pode resumir um trabalho recente e infame de Cronenberg: o curta-metragem de 2021 A Morte de David Cronenberg, que foi co-dirigido por sua filha Caitlin, e cuja reputação vem do fato de ter sido vendido como NFT durante a febre que tomou a internet há alguns anos. Todo esse universo de certificados e vendas digitais não parecia condizer com a imagem de Cronenberg como pessoa pública, e muito menos com o conteúdo mórbido do filme, o que acabou confundindo muitas pessoas durante a recepção do projeto. Em entrevistas, o diretor chegou a falar sobre como o conteúdo do filme era muito embasado em sua experiência pessoal após o falecimento da esposa, e as imagens do curta traduzem diretamente a ideia de que ele está abraçando a própria mortalidade. Mas por que vender o curta, um filme mórbido e profundamente pessoal, como um token criptográfico digital?

O Senhor dos Mortos responde a pergunta. Em seu novo longa, Cronenberg é encarnado em um alter-ego de empresário por Vincent Cassel — um personagem que, em linhas gerais, lida com o luto de sua esposa. O filme — exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo — é inteiramente centrado no luto desse personagem, mas não apenas no sentimento: o enfoque verdadeiro é dado às circunstâncias e abordagens que pairam ao redor dessa condição de pesar. 

De forma estrutural, o filme oscila entre cada caminho que se apresenta ao personagem: trabalho, altruísmo, sexo, tecnologia, conspirações. Cada elemento adentra o filme em um momento específico e continua ali, criando uma progressão crescente para a montagem, que vai intercalando situações que soam quase como várias vidas diferentes. Tal ordenação é a síntese temática de O Senhor dos Mortos, pois ocupa-se o tempo de tela com tantas vertentes que mal sobra espaço para aquilo que realmente importa: o luto. 

Cronenberg tece o vazio a partir do excesso, a partir de coisas grandes demais para sequer fazerem sentido, a partir da superficialidade, da futilidade. A abordagem estética do projeto complementa esse discurso perfeitamente, com talvez o filme mais clean da carreira do diretor. São imagens digitais diretas e retas, bem cuidadas ao extremo, sem vestígios de ruído ou grão, sem obstáculos. Parece até uma propaganda automobilística em certos momentos. 

A imagem digital, além do visual, é também parte essencial do universo narrativo sendo apresentado — pois desde o primeiro plano do filme, não apenas somos apresentados à captação direta digital, mas também ao mundo de recriações 3D que habitam o filme. Diegeticamente, o personagem de Cassel cria um sistema de mortalha, uma roupa que envolve o corpo dos mortos, que é capaz de, em tempo real, recriar uma imagem 3D exata do corpo em decomposição. A primeira imagem que nos é apresentada em O Senhor dos Mortos é uma dessas recriações, mas não em sua manifestação diegética e tecnológica, mas como uma simulação digital que habita os sonhos do protagonista, do mais puro uncanny valley, como uma representação fria que parece tomar o lugar  da memória real. 

O fato dessa imagem primordial ser uma espécie de substituição não pode ser abstraído imediatamente, mas é uma pista do que o resto do longa acaba propondo. Através dessa breve justaposição, Cronenberg analisa com muita honestidade as possibilidades e consequências que a tecnologia moderna oferece — os zeros e uns persistem à morte, a informação digital distrai, a informação digital facilita; é vigilante, é ajudante, é presente. O personagem de Cassel observa essa recriação digital do corpo de sua esposa à exaustão. Seu método de lidar com o luto é se expor aos fatos até sentir-se completamente apático na superfície. Para a manutenção de tal apatia, o personagem se imerge em todas as facilidades e distrações que cruzam seu caminho.   

Inclusive, o título original, em inglês, é bastante sugestivo: The Shrouds, que pode ser traduzido diretamente como As Mortalhas. Um nome menos atrativo mas muito mais literal, que expõe a proposta temática com clareza, pois elabora-se no filme uma demonstração dos muitos véus que podem ser utilizados para privar-se do contato com a morte. No entanto, não há nada de revolucionário em demonstrar a apatia como uma forma de privar-se do luto. A grande sacada está na forma com que isso é amarrado ao fim do longa.

Durante todo o filme, brinca-se nessa estrutura de vais-e-vens com a expectativa do que irá acontecer. As questões se tornam cada vez mais complexas e interligadas, um mistério vai sendo arquitetado aos poucos, mas a resposta que nos é dada não apenas quebra as expectativas como também configura uma resposta à pergunta posta ao fim do primeiro parágrafo.

Ilustra-se a ideia de que se são inescapáveis a morte e o luto, que aceitemos isso como absurdo. Se frente à vida a realidade se apresenta de forma cada vez mais complexa, ao ponto do personagem de Cassel sequer poder abrir um negócio de cemitérios em outro país sem o risco de fornecer dados à espionagem internacional, então há apenas uma solução lógica: deixar-se levar na loucura, desistir da superação e da metafísica em prol de aliar o luto constante à vida fútil, às facilidades, à tudo que não importa. A autoconsciência de que a morte como fato torna a vida em luto numa grande piada, essa é a mensagem que fica do novo longa de Cronenberg e é essa também a resposta ao lançamento cripto do curta anterior, quase como uma pergunta: Por que não?  

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