O Testamento de Oshima

O Homem Que Deixou Seu Testamento no Filme, morte e cinema

Por Felipe Palmieri*

O Homem Que Deixou Seu Testamento no Filme, de 1970, é um longa japonês dirigido pelo emblemático autor Nagisa Oshima. A obra, não tão frequentemente destacada em meio à notória filmografia do cineasta, é um olhar revelador sobre a perspectiva do diretor no que se diz respeito ao funcionamento e função do cinema como meio. Esse entendimento passa, intencionalmente ou não, por pensadores como André Bazin e Roland Barthes, nas noções atreladas ao registro temporal pela imagem fotográfica e a sobrevivência através da simulação. Tanto na premissa quanto no desenvolvimento, o filme é permeado pela presença da morte — não apenas a noção física normalmente abordada, mas também a morte cinematográfica do autor — e suas consequências.

Nagisa Oshima, o autor deste filme, foi uma das mais proeminentes e relevantes figuras vindas da nova onda do cinema japonês nos anos 60. Oshima não estudou cinema, mas pouco tempo após graduar-se na universidade conseguiu emprego em uma produtora. Em menos de cinco anos, o primeiro longa do diretor seria produzido: o pouco conhecido Uma Cidade de Amor e Esperança, de 1959, que explora temáticas que viriam a ser usuais ao longo de sua carreira, como as condições de existência das camadas sociais mais pobres no Japão, a moralidade e a criminalidade.

Ao mesmo tempo, Nagisa Oshima encontrava-se em um posto privilegiado para interessar-se pelo mundo político e artístico. Isso foi demonstrado através de sua inserção, ainda nos anos 1950, em estudos revolucionários comunistas e, principalmente, em movimentos estudantis do período. Tendo iniciado sua carreira no âmbito acadêmico, é ímpar a velocidade com que Oshima ganhou notoriedade através de suas realizações iniciais, tendo sido capaz de se manter sob os holofotes durante muito tempo de sua carreira.

Dono de trabalhos icônicos como Juventude Desenfreada, O Império dos Sentidos e Furyo — Em Nome da Honra, o diretor foi marcante no escopo cinematográfico geral, tendo conquistado diversos prêmios tanto em seu país natal como fora dele. Nacionalmente, foi gratificado por veículos como a Kinejun — publicação sobre cinema mais antiga do Japão — e pelo Blue Ribbon Awards, a associação de críticos japoneses. Internacionalmente também foi reconhecido, destacando-se o título de melhor diretor no festival de Cannes de 1978, com seu filme O Império da Paixão.

Toda sua ascensão como autor ocorreu simultânea ao contexto dos movimentos estudantis japoneses, que culminaram, como em muitos outros lugares do mundo, no que ficou conhecido como “Guerra de Tóquio”, em 1968. Esse plano de fundo político e social permeia muito da vida e da obra de Oshima, mais enfaticamente em filmes como Noite e Neblina no Japão (1960) e o próprio O Homem Que Deixou Seu Testamento no Filme — cujo título alternativo é História Secreta do Pós-Guerra após a Guerra de Tóquio. A relação estabelecida com o período serve o enriquecimento temático principalmente deste, que trabalha além da camada social em uma narrativa metafísica e fragmentada.

A premissa do filme em questão é, em primeiro olhar, despretensiosa: um jovem cinegrafista tem sua câmera roubada por um homem que se suicida e filma todo o processo; subsequentemente o dono da câmera tenta investigar as imagens restantes. Porém, o desenrolar não é tão simples quanto parece. Acompanhamos um grupo de jovens que se especializam em registrar no audiovisual os protestos e manifestações estudantis ocorrendo aos seus arredores. Porém, a questão política e social fica delegada ao segundo plano, dando espaço para o carro chefe trazido por Nagisa Oshima através do protagonista: a morte.

A narrativa experimental traz a história de Motoki (Kazuo Goto), que é o membro do grupo que menos se sente pertencente. Após o incidente da câmera, Motoki acorda de um coma repentino, rodeado por um grupo de cinegrafistas, o qual parece não compactuar com a história que ele relata ter acabado de viver, como se o próprio estivesse delirando. O protagonista, determinado em saber a verdade mas duvidando até mesmo de suas próprias memórias, investiga a morte desse misterioso desconhecido. Ele vê e revê todas as gravações realizadas pelo morto, até mesmo visitando as locações nas quais foram realizadas — trazendo alguma tangibilidade para toda a situação.

Mas aos poucos passa a ficar clara a relação do próprio Motoki com as filmagens, ele estava analisando imagens realizadas por ele mesmo. Visitando as locações isso se torna mais claro ainda: com enquadramentos e personagens das filmagens sendo relacionados diretamente com o protagonista. De acordo com a autora Lúcia Nagib, em seu livro Nascido das cinzas: autor e sujeito nos filmes de Nagisa Oshima: “Essa ausência do manipulador da câmera que rouba o sentido das imagens indica a falência do autor — ou do autor de um certo tipo de filme”.
Algumas imagens do filme evidenciam efetivamente tais temas, principalmente no momento em que Motoki e Yasuo, dois cinegrafistas participantes do movimento, têm uma relação sexual frente à projeção do filme-testamento deixado pelo suposto suicida. Essa contraposição entre a morte do autor sendo projetada e a libertação social e sexual do protagonista simboliza a essência no contraste trazido ao filme: entre representação e realidade. Esse contraste é visto desde sua introdução, na qual o autor Edward Branigan descreve como sendo “uma cena imaginária”.

Oshima propõe uma negação da teoria baziniana do registro imagético como maneira de escapar da morte — pelo menos no que tange o meio cinematográfico — ao sugerir a inexistência de autoria. Bazin, em Ontologia da Imagem Fotográfica discorre sobre a progressão das ferramentas utilizadas por artistas para registrar a realidade, e como o próprio ímpeto de registro seria motivado pela vontade de vencer a morte. Porém, a argumentação cinematográfica indireta edificado pelo diretor japonês traz à tona a autonomia do procedimento tecnológico que é a câmera, ao mesmo tempo que simboliza a morte do autor como paralelo ao fracasso da revolução estudantil.

Tal discurso, no entanto, dialoga diretamente com a obra de Roland Barthes, principalmente no texto “A Morte do Autor”, que aborda um ideário semelhante ao de Oshima mas sob uma perspectiva inversa: de que o autor não seria fruto de uma revolução contra o status vigente, mas sim um subproduto da dinâmica individual do capitalismo. Há ainda outra divergência fundamental, que é o meio tratado por ambos: em Oshima o cinema e em Barthes a literatura; mas ainda assim os entrelaces ideológicos ultrapassam tais discordâncias, e podem ser sintetizados nas próprias palavras de Barthes:

“(…) tendo enterrado o Autor, já não pode portanto acreditar, segundo a visão patética dos seus predecessores, que a sua mão é demasiado lenta para o seu pensamento ou a sua paixão, e que em conseqüência, fazendo uma lei da necessidade, deve acentuar esse atraso e trabalhar indefinidamente a sua forma; para ele, ao contrário, a sua mão, desligada de toda a voz, levada por um puro gesto de inscrição (e não de expressão), traça um campo sem origem — ou que, pelo menos, não tem outra origem para lá da própria linguagem, isto é, exatamente aquilo que repõe incessantemente em causa toda a origem.”
Nagisa Oshima faleceu aos 80 anos, em 2013. Ele já estava há mais de uma década sem realizar filmes, sendo seu último trabalho o simbólico Tabu, lançado ainda em 1999. Os últimos anos do autor e sua vida pessoal, em geral, não pertencem ao intuito buscado na análise, mas é inevitável enxergar como O Homem Que Deixou Seu Testamento no Filme espelha o legado de tantos grandes artistas, e mesmo Oshima, que jurou fidelidade à ausência de autoria no meio fotográfico, não pode escapar dos registros que o sobrevivem. Configura-se então a relação fundamental do registro cinematográfico e da morte, que é a de que os registros para sempre terão sobrevida à seus autores, se é que esses existem.

*Sobre o autor: Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

Referências:

BARTHES, Roland. A Morte do Autor. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BAZIN, André. CINEMA: Ensaios; Ontologia da Imagem Fotográfica. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BRANIGAN, Edward. Subjectivity Under Siege — From Fellini’s 8½ to Oshima’s The Story of a Man Who Left His Will on Film. Screen, Volume 19, Issue 1, 1978. https://doi.org/10.1093/screen/19.1.7

NAGIB, Lúcia. Nascido das cinzas: autor e sujeito nos filmes de Oshima. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.

sem autor. O Homem que Deixou Seu Testamento no Filme, de Nagisa Oshima. Palavras de Cinema, 2019. Disponível em: https://palavrasdecinema.com/2019/07/19/o-homem-que-deixou-seu-testamento-no-filme-de-nagisa-oshima/.