Como o remake de Suspiria lançado em 2018 recontextualiza e expande as ideias do primeiro filme, trazendo uma proposta nova à história de Suzy Bannion
Por Felipe Parlato*
O ano de 1977 marcou o lançamento de obras que são hoje consideradas grandes clássicos do cinema. Em maio daquele ano, Star Wars chega às telonas dando o pontapé inicial do que seria um dos maiores fenômenos da cultura pop de todos os tempos. Em março, o mestre surrealista David Lynch lança seu primeiro longa, Eraserhead, que viria a se tornar referência da estética e do gênero de terror. Mas Eraserhead não foi o primeiro grande filme de terror daquele ano. Em fevereiro, o italiano Dario Argento estreia seu segundo grande filme, Suspiria.
Diferente do filme anterior do diretor, Profondo Rosso, um giallo clássico em sua essência, o filme de 1977 abraça o terror sobrenatural, fugindo de grandes investigações policiais, que aqui servem mais como um pano de fundo para a narrativa. Nela, acompanhamos a chegada de dançarina Suzy Bannion (Jessica Harper) na prestigiada escola de ballet Tanz Dance Akademie, na Alemanha, pouco antes do assassinato de uma das estudantes. Ao decorrer do longa, seguimos desconfianças da protagonista quanto às coisas estranhas que andam acontecendo pela academia que, como acabamos descobrindo posteriormente, é comandada por bruxas milenares.
O filme tem sua construção feita a partir de referências distintas. A história é vagamente inspirada na coleção de ensaios Suspiria de profundis, do escritor inglês Thomas de Quincey, mais especificamente numa sessão do livro baseada em sonhos do autor, em que ele descreve três “mães da dor”: Mater Lacrimarum, a mãe das lágrimas; Mater Suspiriorum, a mãe dos suspiros; e Mater Tenebrarum, a mãe das trevas.
Outra referência presente é a do artista gráfico alemão M.C Escher, famoso por retratar em suas obras formas objetos geometricamente impossíveis e trabalhos que brincam com simetria e perspectiva. A influência da obra de Escher pode ser contemplada nos visuais surrealistas e cores contrastantes do filme, tanto na escola em si quanto no hotel, onde pode-se observar uma referência direta sua à xilogravura Sky and Water I:
A trilha sonora do filme foi composta pela banda italiana de rock progressivo Goblin, bem característica da época e que, ao se somar ao design de som, que traz sons crus de gritos e destruição, dá ao filme uma uma sonoridade intensa e inquietante.
Em 2018 é lançado o remake de Suspiria, anunciado 10 anos antes, sob direção de Luca Guadagnino, então já consagrado após o sucesso de seu longa anterior, Call Me By Your Name, de 2017. Nessa nova versão, os visuais alucinantes de Dario Argento são substituídos por um visual mais sóbrio, e os assassinatos cortantes dão lugar a um body horror que se utiliza das danças altamente coreografadas do longa.
Com colossais 2 horas e meia de duração, substancialmente maior que as 1h40 do original, o filme ainda é dividido em seis atos e um epílogo, o que condiz com a proposta da releitura de expandir a mitologia das Três Mães, que na obra de Argento tem seu cânone desenvolvido bem mais superficialmente.
Guadagnino e o roteirista David Kajganich apresentam um contexto narrativo mais calcado na realidade: a Alemanha de 1977, durante a Guerra Fria, em um período em que diversos sequestros outros atos terroristas por parte do Exército Vermelho Alemão assolavam o país, em um período que ficou conhecido como Outono Alemão. Tudo isso acompanhado da trilha sonora minimalista de Thom Yorke, do Radiohead, composta para o filme.
Além de Suzy, interpretada por Dakota Johnson, acompanhamos também o psiquiatra Josef Klemperer (Tilda Swinton) e sua investigação cínica sobre as anormalidades da escola em meio a traumas relacionados à perda da esposa no fim da Segunda Guerra. A trama das bruxas também é expandida, e as observamos tramando rituais e trocas de comando que envolvem Suzy, Helena Markos e sua segunda em comando, Madame Blanc (ambas interpretadas também por Tilda Swinton).
Dessa forma, as bruxas que antes serviam apenas como antagonistas agora recebem mais nuances e destaque, já que há momentos da história que acompanhamos pelos seus pontos de vista. Isso, de acordo com o próprio diretor, parte de uma proposta de não colocar o espectador em uma visão completamente oposta das matriarcas da academia, estabelecendo também um paralelo entre a repressão de bruxas durante a inquisição e o momento de forte autoritarismo político também vivido na Alemanha dividida do pós Segunda Guerra.
Ao colocá-las em posição de poder e Klemperer, um dos únicos homens da narrativa, em uma posição vulnerável e de denúncia, o filme também inverte os papéis sociais de cada gênero como parte do comentário, como aponta Veyzon Campos Muniz em um ensaio sobre o assunto.
Suspiria acabou por se tornar um dos raros casos em que o remake trouxe propostas muito distintas em relação ao filme original, e ainda assim conseguiu brilhar através dessa originalidade. Um dia o distanciamento histórico nos proporcionará também novas perspectivas do que é o Suspiria de Guadagnino e o que significa no momento em que vivemos, assim como aconteceu com o filme de Dario Argento. Nos resta aguardar e reassistir.
*Sobre mim: Felipe Parlato gosta de muitas coisas, uma delas é o cinema. Estuda jornalismo na Cásper Líbero. Enquanto não descobre sua maior paixão, vai se dedicando um pouco a cada uma delas.
Referências:
- Bustos, Rebekah. Horror, Colour and Design in Dario Argento’s ‘Suspiria’. 2021
- Director Luca Guadagnino Discusses “Suspiria” — BUILD SERIES
- Suspiria | Original vs Remake — Little White Lies
- Suspiria Hamilton, Nicole. Irish Gothic Journal; Dublin Ed. 18, (Autumn 2020): 261–265.