No cinema, as coisas reverberam entre si e o tempo se move em espiral, Smithson e Benning o cristalizaram, seja por interferência ou por observação
Henrique Guimaraes
Permitam-me contar-lhes uma história entre dois filmes, Spiral Jetty*, de Robert Smithson e Casting a Glance, de James Benning. É uma história do tempo, começa em 1970, termina na eternidade.
Em 1970, o artista Robert Smithson finalizou Spiral Jetty, uma land art em espiral feita de lama, cristais de sal, pedras e água no Great Salt Lake, em Utah. No mesmo ano, fez o documentário homônimo sobre o processo de construção da obra e muitas outras coisas as quais a simples observação da escultura não permitiria que fossem contempladas. Aqui, a montagem em seu poder transportador funciona como um trabalho de arqueologia em um filme interessado na história do mundo, em fenômenos, evoluções e viagens espaço-temporais, mas também em reflexos, brilhos e entradas de luz:
“Como dois homens das cavernas, conspiramos como ir de Nova York a Spiral Jetty. Sucedeu-se uma geopolítica de retorno primordial. Como transpor a geografia da terra de Gondwana, do mar austral e de Atlantis tornou-se um problema. A consciência de um passado distante absorveu o tempo dispendido fazendo o filme. Eu precisava de um mapa que mostrasse o mundo pré-histórico como uma coextensão do meu mundo.” [1]
Spiral Jetty começa com erupções solares, mas rapidamente já está em um museu de fósseis iluminado por um vermelho infernal, seguido por esse mapa que Smithson diz precisar para alcançar a coextensão entre passado e futuro. Ele alcança, intercala tudo isso com cenas que passeiam com pressa por uma estrada que chega no presente no Great Salt Lake, onde mostra toda a construção da land art, os materiais, a estrutura, a repetição do trabalho que se traduz na narração do diretor, as necessidades de um artista.
Mesmo assim, o filme continua seu interesse para além da documentação de Spiral Jetty, sendo também um atestado da montagem e da criação de imagens, porque, por enquanto, não filma a escultura em sua totalidade, mas coloca em oposição planos silenciosos do reflexo do sol na água – a interação do mundo com o mundo –, contra planos barulhentos em câmera lenta de uma escavadeira destruindo o solo, movendo pedras, alterando a organização natural da paisagem – a interferência do homem no mundo. É uma espécie de registro de tradição experimental, que interage com o espectador ao lançar-lhe imagens que guardam em si mistérios sobre suas composições, transformando constantemente a distância entre o olho/câmera e o objeto.
A distância em Spiral Jetty
Após a construção ser concluída, Smithson é filmado percorrendo toda a espiral, a câmera que está num helicóptero une o homem a sua criação e, mais do que isso, à história do mundo, ao astro. O Sol que fervia no começo do filme agora entra na lente através de raios de luz causados pelo espelho d’água enquanto o artista se dissolve na paisagem, mas se encontra impresso na película, tornando-se também um componente de imagem, como a água, o sol, a luz e Spiral Jetty.
“À medida que o helicóptero ganhava altitude, uma luz devastadora engolia as partículas rochosas da espiral. Toda a existência parecia incerta e paralisada. O som do motor do helicóptero tornou-se um rugido primevo, ecoando por vistas aéreas rarefeitas. Seria eu apenas uma sombra em uma bolha de plástico, flutuando em um espaço exterior ao corpo e à mente? Et in Utah ego. Eu estava deslizando para fora de mim novamente, dissolvendo-me em um início unicelular, tentando encontrar o núcleo no fim da espiral.” [ibid.]
O helicóptero também se move em espiral, assim, tudo experimenta a insolação e repete a escala da obra. Spiral Jetty sofre a interferência da natureza, esta que sofreu a interferência do objeto de Spiral Jetty. É a marca do tempo em um filme que passa por processos de land art que dizem respeito ao que a câmera captura. Como se não fosse metalinguístico o bastante, o último plano se insere em sua própria sala de montagem, onde a moviola está abaixo de uma fotografia de Spiral Jetty. Pela última vez, passado, presente e futuro se misturam: a escultura está pronta enquanto o filme está sendo montado, mas este já é visto por completo.
Dois anos depois, Smithson morreu em um acidente de avião quando sobrevoava o Texas para um futuro trabalho, Amarillo Ramp. Durante esse tempo, Spiral Jetty começou a ser coberta pelo lago, só emergindo novamente em 2002. Entre 2005 e 2007, James Benning foi 16 vezes ao Great Salt Lake para fazer Casting a Glance, um documentário. Este, sim, uma aparente simples observação da obra, que por esse motivo completa Spiral Jetty, filme e escultura. Mas a história de Benning com Jetty começou em 1989, quando foi pela primeira vez ao lago. Desde então, o lugar apareceu várias vezes em seus outros filmes, como North on Evers (1991), Deseret (1995) e 13 Lakes (2004).
Por isso, Casting a Glance tem algo de ficcional, já que entre os 80 planos de aproximadamente um minuto cada existem cartelas que indicam datas que começam em 30 de abril de 1970 e terminam em 15 de maio de 2007, mesmo que Benning tenha gravado apenas por dois anos. Assim, filma diversas transformações pelas quais a escultura passou – foi parcial ou totalmente coberta por água, recebeu pessoas e uma camada de sal trazida pelo lago, emergiu, recuou e avançou em relação à margem; a vida aconteceu.
O efeito do mundo em Casting a Glance
Dessa maneira, se Smithson filma a escultura por pouco tempo (Spiral Jetty tem 32 minutos) e transforma o olhar com as outras coisas que existem no documentário, Casting a Glance é mais reduzido, filma apenas o objeto por muito tempo e acalma o olhar. Através de Jetty, Smithson fala sobre o mundo. Através do mundo e do tempo em Jetty, Benning fala sobre Spiral Jetty, a coloca em relação com as outras coisas, mostra duração, os efeitos da natureza na obra, a integração que faz aquilo ser uma land art e tudo o que Smithson não pôde ver, levando artista, escultura e filme para a eternidade.
E Benning não o faz por análise, explicação, dissecação, desconstrução ou coisa do tipo, mas por filmar o tempo, coisa que sempre fez em seu cinema, o que é ainda mais bonito. Se ofereceu e debruçou sobre a obra de outro artista, evidenciando que aquilo existe mesmo depois do fim.
“Todo objeto, se for arte, é carregado com a pressa do tempo, mesmo que seja estático, mas tudo isso depende do observador. Nem todo mundo vê a arte da mesma forma, apenas um artista que vê arte conhece o êxtase ou o pavor, e essa visualização acontece no tempo. A great artist can make art by simply casting a glance.” – Robert Smithson [2]
O que tem tudo a ver com seu interesse para com o cinema, o registro do inevitável na paisagem, aqui como homenagem e complementação, o exame dos Estados Unidos, suas contradições, seus lugares, sua movimentação, suas pessoas, luzes e pequenas narrativas que passam por esse olhar para o interior que reflete no exterior, como em 11 x 14, de 1977, Landscape Suicide, de 1986 e The United States of America, de 1975.
No final do filme, Spiral Jetty é vista de longe enquanto um rugido que pode vir de um helicóptero se mistura com os sons da natureza. Novamente, tudo morre e tudo continua. No cinema, as coisas reverberam entre si e o tempo se move em espiral, Smithson e Benning o cristalizaram, seja por interferência ou por observação.
Casting a Glance
*Quando usado Spiral Jetty, em itálico, faz referência ao filme. Já Spiral Jetty, em grafia normal, à escultura.
Bibliografia:
[1] Robert Smithson, “A Spiral Jetty”, 1972, traduzido por Patrícia Mourão de Andrade para a Revista Zum. Disponível em https://revistazum.com.br/ensaios/a-spiral-jetty-1972/.
[2] Robert Smithson, “A Sedimentation of the Mind: Earth Projects,” Robert Smithson: The Collected Writings ed. Jack flam (Berkeley: University of California Press, 1996), p. 142.R. Em Michael Ned Holte, “James Benning, casting a glance, 2007”, para a revista X-TRA
Disponível em https://www.x-traonline.org/article/james-benning-casting-a-glance.