45 anos de ‘Dona Flor e seus dois maridos’: Uma análise de roteiro

Um dos clássicos do cinema nacional completa 45 anos. Dona Flor e seus dois Maridos, com algumas ousadias, faz de uma narrativa simples um roteiro inovador e envolvente. Mas cuidado! O texto está repleto de spoilers.

Por Íris Chadi*

Dona Flor e seus Dois Maridos foi lançado em 1976, com direção de Bruno Barreto e estrelado por Sônia Braga (Dona Flor), José Wilker (Vadinho) e Mauro Mendonça (Dr. Teodoro Madureira). O longa conta a história de Dona Flor, que perde o marido, Vadinho. Ele infarta logo no começo do filme. Acompanhamos o luto da personagem, suas memórias, seus novos envolvimentos amorosos e seu dilema como protagonista.

Vamos entender como os roteiristas Bruno Barreto, Eduardo Coutinho e Leopoldo Serran construíram um roteiro que usa o conflito interno da personagem para guiar a obra e a percepção do espectador sobre a protagonista. E já adianto: eles fizeram isso tão bem que ganharam dois Kikitos no Festival de Gramado, uma indicação no Globo de Ouro e outra no BAFTA.

A ESTRUTURA

“Durante o carnaval de 1943 na Bahia, Vadinho, um mulherengo e jogador inveterado, morre repentinamente. Sua mulher, Dona Flor, fica inconsolável, pois, apesar de ter vários defeitos, ele era um excelente amante. Algum tempo depois, ela se casa com Teodoro Madureira, um farmacêutico que é o oposto do primeiro marido. Juntos, eles têm uma vida estável e tranquila, mas tediosa, até o dia em que o fantasma de Vadinho aparece na cama de Dona Flor.” Esta é a sinopse de Dona Flor e seus dois Maridos na Wikipedia.

Ao lê-la, o espectador pode pensar que, logo no começo do filme, Vadinho aparecerá na cama de Flor, colocando-a em um impasse entre um homem e outro. Afinal, ao ler sinopses, termos como “até o dia em que” indicam o gatilho do enredo, no qual os protagonistas são confrontados com um dilema nos minutos iniciais e precisam de todo o desenrolar do longa para solucionar este conflito. Este gatilho é chamado de incidente incitante: é o evento narrativo que geralmente ocorre logo no começo do filme, lançando o protagonista em uma jornada permeada por dilemas, em que ele deve resolver conflitos externos e internos.

Porém, Florípedes só é, de fato, inserida em seu dilema quando faltam 24 minutos para o filme acabar. A 1h33min, Vadinho aparece como ‘fantasma’ pela primeira vez, para fazê-la tomar uma decisão quanto a seus interesses amorosos.

Por que o dilema de Dona Flor aparece tão ao final da obra? Vamos analisar os atos do roteiro e entender a fundo esta história.

  1. A morte de Vadinho

Este é o primeiro evento narrativo do filme. Ele abala a vida da protagonista, muda seu estado emocional e comportamento e a lança em uma jornada de luto e superação da morte de seu marido. Este acontecimento é o incidente incitante da obra, mas ele gera em Dona Flor apenas um conflito interno. A protagonista precisa lidar com seus próprios sentimentos após o falecimento de Vadinho, mas ainda não há um conflito externo, ou seja, algum problema dela com outras pessoas.

Nos é apresentado seu sofrimento e nos solidarizamos por ela, automaticamente sentindo empatia pela personagem, elemento fundamental das narrativas clássicas, para assegurar que o espectador se conecte com a protagonista.

2. Flashbacks

Após acompanharmos um pouco do luto da protagonista, o roteiro nos leva a flashbacks da vida do casal antes do infarto de Vadinho. Vemos que o relacionamento dos dois era conturbado, já que o marido não respeitava a esposa: vivia bêbado, não trabalhava, gastava o dinheiro de Flor em jogos, não largava um rabo de saia e ainda batia nela. Mesmo assim, o amor dos dois era intenso. Dona Flor amava e desejava muito seu esposo, apesar de sofrer com ele.

Também vemos muito da personalidade da própria protagonista neste momento. Ela é uma boa pessoa, que sempre ajuda os outros e, muitas vezes, se prejudica por isso. Este ato dura em torno de 45 minutos e não é ligado por um enredo sólido, mas permeado por momentos da vida dos personagens, cujo objetivo não é fazer avançar a narrativa, mas se aprofundar em Dona Flor e Vadinho. Neste ponto, conhecemos profundamente nossos personagens.

3. O relacionamento com Dr. Teodoro

Os flashbacks se encerram e, já de cara, Dona Flor esbarra no Dr. Teodoro. O relacionamento dos dois floresce e eles se casam. É neste momento que o roteiro faz uso de uma construção dialética para expor o dilema interno de Dona Flor, contrastando o antigo casamento com o novo. Esta é uma relação saudável e estável, mas Dona Flor não está realizada. Falta a emoção e a paixão que Vadinho inspirava nela.

Sem precisar de um evento narrativo que imponha um dilema para Florípedes, o impasse é estabelecido: A protagonista tinha um marido péssimo, mas que era bom amante e agora tem um bom marido, que é péssimo amante. Aqui, compreendemos totalmente o que se passa na cabeça de Dona Flor e nos identificamos com sua situação.

Este ato, como o anterior, também é composto por ocorridos. O enredo fica em segundo plano, o que importa é entendermos como a protagonista se sente.

4. A reaparição de Vadinho

Finalmente, faltando 24 minutos para o término do longa, Vadinho reaparece nu para Dona Flor, a tentando. Esse evento narrativo é de tanta importância quanto o incidente incitante inicial e pode, também, ser chamado de um segundo incidente incitante, pois é neste momento que Dona Flor é confrontada com um conflito externo. Depois de passar pelo luto e refletir sobre seus dois relacionamentos, o dilema que havíamos percebido no ato anterior se concretiza. Ela deve escolher entre um ou outro. E aí, sim, temos um enredo que avança.

O espectador se questiona quanto ao que a protagonista fará e acompanha os altos e baixos de seu processo. Dona Flor toma, então, uma sábia decisão: fica com os dois. Apenas a partir daqui temos de fato um enredo no qual a protagonista tem um desejo consciente, um desejo inconsciente, um objetivo, um dilema e uma janela de tempo para resolver tudo isso até o filme acabar.

É, de fato, pouco tempo até o término do longa, mas, quando Vadinho reaparece, a história de Dona Flor já foi contada. Já sabemos seus sentimentos, seus dilemas, seus desejos e já nos conectamos com ela. E é por isso que é necessário pouco tempo para encerrar o filme. Tudo já foi explicado, o conflito interno de Dona Flor já foi compreendido, tanto por ela, quanto por nós. Agora só falta amarrar as pontas do conflito externo: a protagonista é tentada por um lado e por outro, até o clímax.

5. A decisão

No clímax do filme, Dona Flor cede às tentações sexuais de Vadinho e parte para a resolução da obra ao assumir os dois maridos.

POR QUE SEPARAR O CONFLITO INTERNO DO EXTERNO?

Imagine se o filme começasse com uma Dona Flor aparentemente feliz em seu casamento com Dr. Teodoro e, nos primeiros 15 minutos da obra, Vadinho aparecesse pelado na cama da protagonista. Flor seria lançada a uma mesma jornada de escolher entre eles.

Pareceria insano, a um espectador, que ela se sentisse tão tentada por uma alucinação, quando ela tem, a seu lado, um homem vivo e um relacionamento agradável. Será que haveria algum tipo de conexão com Dona Flor ou pareceria ela uma mulher ingrata que não valoriza seu bom marido? Levemos em conta a época em que o filme se passa (década de 1940) e a época em que ele foi lançado (década de 1970).

Precisamos, primeiro, nos conectar e compreender a situação em que ela se encontra para, depois, a apoiarmos em sua decisão de assumir os dois maridos. A estrutura do filme é utilizada para justificar a escolha da personagem.

Nós nos compadecemos com ela pelos lados ruins de ambos os relacionamentos e queremos, também, que ela tenha o melhor dos dois mundos. Afinal, vimos como ela é uma boa pessoa.

E o espectador precisa entender também o porquê de Vadinho reaparecer. Dona Flor e seus dois Maridos não é um filme de fantasia. É um filme de uma mulher que sempre foi privada de algo e que, em sua cabeça, dá um jeito de ter o que quer: com visões de seu ex-marido. É necessário que o espectador tenha uma compreensão da forma como Dona Flor lida com a saudade de Vadinho. Todo o ato de flashbacks ocorre, pois a protagonista está revivendo o passado. E ela chega em um momento de seu relacionamento com Teodoro que ela precisa se agarrar a este passado e à memória de seu ex-marido para ter algum prazer.

Precisamos entender isso antes de opinar acerca de sua decisão, senão poderíamos não compactuar com a atitude da protagonista e não sentir empatia por ela.

COMO ESSA ESTRUTURA SE SUSTENTA?

Muitas vezes, o que sustenta uma história é um enredo sólido, que se dá pelo conflito externo, mas tem raízes no conflito interno da personagem. Pode parecer estranho que um longa espere tanto tempo para inserir o conflito externo, que parece sempre tão essencial.

Mas Dona Flor e seus dois Maridos funciona exatamente por promover uma relação íntima entre o espectador e a protagonista. Durante os dois atos do meio pode não haver um enredo sólido que ligue tudo numa narrativa progressiva, mas o que une os pontos são os sentimentos de Dona Flor. Somos guiados por sua memória, seus pensamentos e tudo o que ela sente perante os acontecimentos. O conflito interno dela é o suficiente para nos prender por uma hora e meia, pois ela é complexa, humana, interessante. Nos basta sentir o que ela sente.

Dona Flor e seus dois Maridos mostra como uma história de enredo simples, como um triângulo amoroso, pode se diferenciar e se complexificar quando pensamos sua construção por uma perspectiva de empatia pela protagonista, mais do que pela necessidade de se resolver um enredo progressivo. Assim, o longa concilia o plot e a personagem com a mesma habilidade que Florípedes concilia Teodoro e Vadinho.

*Sobre a autora: Íris Chadi é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, cineasta independente e roteirista de profissão. No cinema, seus principais interesses se concentram no surrealismo, no medo e em novas formas de se pensar e fazer a sétima arte.

REFERÊNCIAS

Story, Robert McKee (1997)

A Poética, Aristóteles

A Poética do Cinema, David Bordwell (2007)