O museu da memória de La Jetée

Como o curta-metragem de Chris Marker trabalha com o tempo em todas as suas formas e resgata a memória do cinema nesse poético conto de ficção científica.

Por Carolina Azevedo*

O cinema é uma arte essencialmente marcada pelo tempo, seja ele o tempo de duração, o tempo diegético ou o próprio ritmo de uma história. O “foto-romance” La Jetée, do francês Chris Marker explora o assunto em todas as suas instâncias: de forma a conteúdo, o curta mostra como “não se pode escapar do tempo”.

Composto apenas por fotos interligadas tal qual cenas de um filme, La Jetée conta a história de um homem “marcado por uma imagem da infância”, em uma Paris perante à Terceira Guerra Mundial. O nome do filme, traduzido como “A Plataforma” diz respeito à plataforma do aeroporto de Orly, em Paris, sobre a qual pessoas avistavam aviões decolar e pousar aos domingos tediosos. É nesse local em que o protagonista avista tal imagem: a face de uma mulher bela seguida pela morte de um homem.

Após a guerra, a humanidade é empurrada para os subsolos das grandes cidades, onde são conduzidos experimentos com tempo como forma de manter a sobrevivência humana. O sujeito, preso naquela imagem do passado, se torna um dos objetos de pesquisa, sendo enviado para o passado, onde conhece a mulher que marca sua existência, e então para o futuro.

O primeiro momento em que Chris Marker explora o tempo em seu romance é exatamente na forma como ele foi construído: fotografias contam uma história e apresentam personagens como um filme qualquer. A estase atrelada às fotografias resulta em uma diferença entre o tempo decorrido dentro da narrativa e aquilo que é apresentado ao espectador, que se transforma em entendimento sistemático da estase do material acessível e das formas como a consciência transforma o que vê e o que apresenta.

Parte da sequência de estátuas de La Jetée (1962)

O conceito de viagem no tempo, explorado pelo curta, depende da noção de que todos os eventos estão presentes. Uma imagem que ilustra claramente a ideia é justamente aquela do rolo de filme cinematográfico: milhares de frames mantém-se como instantes possíveis simultâneos e presentes. Conforme o filme é projetado — o próprio verbo jeter, que dá nome ao filme, é a raiz de projeter — todas as imagens tornam-se presentes no aqui agora. Filmar é aprisionar momentos, o rolo de filme é um museu de memórias.

A mesma expressão é utilizada pelo narrador quando o protagonista passeia com a mulher por um museu — animais empalhados, estátuas, fotografias, o filme todo é marcado pela estase, um verdadeiro museu da memória do personagem e do próprio cinema como forma de arte.

O segundo ponto o qual o filme explora no que diz respeito ao tempo é o momento no qual se passa a narrativa: uma Paris destruída por uma Terceira Grande Guerra, um futuro distópico em que a Europa torna-se inabitável por conta da radioatividade. Nesse contexto, pesquisadores sobreviventes vêem no tempo um caminho para a sobrevivência, um buraco no tempo pode ser para eles um canal de transmissão de comida, medicamentos e fontes de energia, por isso exploram indivíduos de mente criativa e sonhadora para tentar desbravar passado e futuro.

O momento em que se passa o filme pode ser visto como uma analogia ao momento em que vivia a própria Europa naquele momento. Chris Marker, nascido Christian Bouche-Villeneuve em 1921, viu a Segunda Guerra Mundial desenrolar com seus próprios olhos, presenciando toda a destruição física e moral de Paris e seus habitantes. Em meio à Guerra Fria, existia o medo de uma guerra nuclear, sinônimo de fim da humanidade como a conheciam, cujo resultado poderia muito bem ser o que foi retratado por Marker no filme. La Jetée é, portanto, uma distopia futurista baseada nas memórias de guerra de um cidadão que tudo aquilo vivenciou menos de 20 anos antes da concepção do filme.

A Paris destruida de La Jetée (1962)

Assim como o autor, o protagonista tem sua memória como parte integrante de quem ele é enquanto indivíduo, e é exatamente isso que o faz alvo dos experimentos. Dada sua vivência constante em uma memória do passado, ele consegue voltar no tempo com êxito. Ao retornar ao passado, ele passa inúmeros momentos — aparentemente desconexos — ao lado da mulher misteriosamente por ele amada. Apesar de ser a memória o vetor do movimento, é no tempo que ele viaja, por dias de calma reais antes da guerra, um mundo sem data em que vive no tempo de amor ao lado daquele rosto amado.

Na metade do filme vemos os dois lado a lado, em uma cama. Naquele momento, “o tempo se constrói simplesmente ao redor deles”, o tempo do amor, em que a razão é transformada em intuição e a mulher se move como em um filme. As imagens de sua face passam com crescente velocidade até atingirem 24 frames por segundo — o tempo das imagens no cinema. Ele finalmente escapa do tempo em uma apoteose romântica que o leva de volta à plataforma, momento em que é retirado do momento pelos experimentadores, que decidem que é hora de levá-lo ao futuro.

Nesse futuro, formado de imagens quebradas e faces estranhas, é oferecido que ele viva no período para sempre, escapando dos porões nos quais ele estava sendo submetido àquela tortura. O personagem aceita, pedindo que antes retorne ao momento da plataforma — frente à possibilidade de escapar dos anseios do presente, ele se apega ao passado.

Ao retornar ao momento, daquela vez como adulto, ele reconhece um dos experimentadores e corre para salvar a moça, é então que percebemos que a morte que o marcara a vida toda era a sua própria: não se pode escapar do tempo.

O momento da morte em La Jetée (1962)

*Sobre a autora: Carolina Azevedo é estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e editora-chefe da Revista Vertovina. Tem como principal interesse o cinema, sobretudo quando a arte se transforma em meio de mudança social, grito dos silenciados e resistência.

Referências:

Kawin, Bruce. “Time and Stasis in ‘La Jetée.’” Film Quarterly, vol. 36, no. 1, University of California Press, 1982, pp. 15–20, https://doi.org/10.2307/3697180. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3697180?seq=1#metadata_info_tab_contents

ZANNIER, Paolo “Sous la beauté impalpable d’un visage, le souvenir effaré de nos ombres: La Jetée, de Chris Marker” Fiche d’analyse de film Cinepage, vol. 116, Déc 2003. Disponível em: http://www.cinepage.fr/filmotheque/lajetee.pdf