Cry Macho, O Irlandês e o Epílogo do Cinema Americano

Como os novos filmes de alguns dos maiores nomes do mundo das últimas décadas remetem à memória do cinema americano.

Por Felipe Palmieri*

No texto Ontologia da Imagem Fotográfica o crítico e pensador francês André Bazin descreve a imagem como um instrumento de preservação de momentos. O registro de uma realidade momentânea. O cinema para ele é a primeira manifestação de não apenas a imagem das coisas, mas de sua duração, seu tempo. Trazer registros de um tempo já passado para o presente apresenta-se então como uma quebra da entropia sistêmica norte-americana, mas é o que figuras de outrora vêm realizando,uma revisão das próprias imagens.

Martin Scorsese, Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Clint Eastwood. Alguns dos maiores nomes do mundo décadas atrás, cuja resistência no imaginário popular se deve ao quão atrelados à arquétipos foram suas carreiras. O mafioso, o gângster, o cowboy, são todos imagens recorrentes, mas absolutamente entrelaçadas com a percepção pública de tais figuras, mesmo que inconscientemente. Assumindo isso, em O Irlandês (2019) e Cry Macho (2021), esses já ultrapassados figurões visitam seus arquétipos com outros olhos.

Martin Scorsese se reuniu pela primeira vez com Al Pacino na realização de O Irlandês, uma colaboração tão óbvia que surpreende ter tardado tanto. Foi também a produção que trouxe de volta Robert De Niro e Joe Pesci ao cinema de Martin Scorsese, ambos atores os quais participaram ativamente do mais bem sucedido período da carreira do diretor (principalmente De Niro, o qual colaborou com o diretor ítalo-americano em 8 ocasiões entre as décadas de 70 e 90). Tanto o diretor quanto os atores são indubitavelmente subordinados à máfia no cinema. Imageticamente falando.

Concomitantemente, ascendeu a figura de Clint Eastwood na reinvenção do cinema de faroeste que entrou em fruição nas décadas de 60 e 70. Ele se tornou a encarnação de todas as ideias que esse cinema passou a pregar e aderiu à iconografia de forma que jamais fosse possível enxergá-lo de outra forma. Um homem misterioso, que chega em um local estranho e salva o dia, havia um ideário machista e frequentemente dúbio na moralidade que ocupava seus personagens, e era refletido até na persona do próprio ator na vida real.

Todas essas figuras foram cruciais na retomada do cinema americano após o fim da era dos estúdios, num surgimento do forte cinema independente descentralizado de Hollywood. Elas funcionaram como expansões conceituais, linguísticas, geográficas e financeiras para as noções americanas de como o cinema deveria ser feito.

Grandes sucessos estrelados ou conduzidos por Eastwood, por De Niro, por Scorsese, dominaram e revolucionaram o panorama da indústria. Filmes como Três Homens em Conflito (1966), Dirty Harry (1971), Caminhos Perigosos (1973), Taxi Driver (1976) e Touro Indomável (1980), acabaram por cimentar o que viria a ser o cinema comercial ao longo dos próximos anos. Tais sucessos, e muitos outros ainda enquadrados nos gêneros mais proeminentes da carreira dessas estrelas, são a razão principal de sua popularidade. Ao longo dos anos, porém, houve um afastamento dos gêneros que foram o alicerce de seu estrelato, o que levou os tão importantes nomes supracitados para o escanteio da indústria.

O Irlandês surgiu prometendo ser o retorno de todos estes ao que mais havia lhes alavancado a carreira, ao que os fãs clamavam querer ver novamente. O filme, porém, optou por tomar uma direção diferente. O crítico de cinema Matheus Fiore aponta em sua análise da obra que para todos esses nomes, o filme se torna um estudo de como a presença dessas pessoas na construção da violência na história do cinema americano é refletida em tela. A romantização dá lugar à relativização,à comédia, ao drama e seu quadro final é um epitáfio da iconografia do cinema gangster.

É um filme que incorpora para si a passagem do tempo, tanto em sua narrativa quanto em sua duração, aderindo a isso tematicamente na análise do cansaço e desgaste a que todos estamos sujeitos. De forma que honra a ideia de Bazin, os personagens são acometidos ao desgaste, ao isolamento, à desilusão. O cinema como registro do tempo. É uma progressão contínua de fracassos e desmistificações, resultando apenas no diálogo direto com a realidade desse tipo de filme e dos próprios autores na indústria. Não há mais espaço para o velho, só se pode fugir dos efeitos do tempo remetendo-se à memória.

Quanto ao filme de Clint Eastwood, que demonstra inigualável resiliência dirigindo e estrelando o longa já aos 90 anos, a abordagem parte do mesmo espírito mas toma um rumo diferente. Como é analisado na crítica do filme feita por Wallace Andrioli, os filmes nos quais Clint serve tanto como ator quanto diretor tendem a possuir um quê autobiográfico. Seja Gran Torino (2008), A Mula (2018) ou, agora, Cry Macho (2021), todos os filmes refletem sobre as diferentes encarnações que fundamentaram a imagem que o público possui de Clint Eastwood. Porém, o tópico do cowboy e dos faroestes em geral parece ser um pouco sensível para o ator e diretor. Já tendo dirigido obras que refletem sobre o próprio gênero, como Josey Wales, o Fora da Lei (1976) e Os Imperdoáveis (1992), se volta agora à própria figura, numa análise imagética e temática que desconstrói o jovem cowboy Eastwood sob um olhar sensível já da 3ª idade.

A palavra sensível é chave para o filme. Clint aparecendo como um cowboy após quase 30 anos desde sua última aparição sobre um cavalo no cinema não é à toa. Cry Macho desconstrói toda a macheza atrelada ao ator e dá lugar à suavidade ao aproveitar os momentos da vida e evitar conflitos. É um filme epílogo, que mal possui uma estrutura narrativa e sequer se importa com isso, valorizando os momentos de ternura e prestando homenagem à imagem do cowboy Eastwood (e ainda contradiz os aspectos negativos atrelados à essa imagem).

Cry Macho e O Irlandês são lados opostos de uma mesma moeda, por serem filmes inteiramente construídos sob o pretexto de homenagear ícones passados, mas um toma uma abordagem pessimista enquanto o outro é uma gota de esperança no mar do cinema contemporâneo. Essencialmente, nas palavras do teórico francês da Cahiers du Cinema Raymond Bellour, o cinema é um exercício coletivo de memória — e alguns velhos figurões entenderam isso.

FONTES:

ANDRIOLI, Wallace. Cry Macho: O Caminho para a Redenção. Plano Aberto, 2021. Disponível em:<https://www.planoaberto.com.br/critica/cry-macho-o-caminho-para-redencao/>.

BAZIN, André. CINEMA: Ensaios; Ontologia da Imagem Fotográfica. São Paulo: Brasiliense, 1991.

DIENSTFREY, Harris. The New American Cinema. Commentary Magazine, 1962. Disponível em:<https://www.commentary.org/articles/harris-dienstfrey/the-new-american-cinema/>.

FIORE, Matheus. O Irlandês. Plano Aberto, 2019. Disponível em:<https://www.planoaberto.com.br/critica/o-irlandes/>.

FIRMIANO, Maicon. Encenação da Memória. Contrabando, 2021. Disponível em:<https://www.leiacontrabando.com/encenacao-da-memoria/>.

TUOTO, Arthur. A Morte do Cinema. Arthur Tuoto, 2018. Disponível em:<https://arthurtuoto.com/2018/06/28/a-morte-do-cinema/>.