A artista que tinha histórias demais para contar: Cecelia Condit e o medo de ser mulher.

No dia de Halloween, o dia dos medos e perigos, proponho a pergunta: existe algo mais assustador do que ser mulher? Em entrevista Cecelia Condit conta um pouco desse horror.

Por Carolina Azevedo*

Enquanto gênero cinematográfico, o horror tem a missão de representar os medos e anseios humanos. Também é fato que o terror é marcado por narrativas masculinas, as mulheres por trás das câmeras sendo extremamente raras até os dias de hoje. Cecelia Condit é uma dessas figuras femininas que decidiram desafiar narrativas e contar suas histórias através do audiovisual — mais especificamente, através de vídeo-artes e curta-metragens de horror, um horror que ao mesmo tempo é absolutamente real e assustadoramente fantasioso.

“Minha mãe vivia falando sobre as pessoas da minha família. De todas as histórias, nem uma única tinha a ver com mulheres. Eu olhava para minha árvore genealógica e não tinha uma única mulher entre eles, o que é desanimador. Faz com que você sinta que apenas existem histórias masculinas e que eles vivem mais facilmente que mulheres, algo em que eu realmente acredito.”

Como diz a artista, a história é marcada por narrativas masculinas. Se o cinema representa a realidade, o cinema é marcado também por narrativas masculinas. Já se o terror representa os medos humanos, mas a humanidade do cinema existe apenas sob o formato de homens, esses medos não são representativos da psique feminina, que é preenchida por eles.

A arte de Cecelia Condit, por outro lado, conta exatamente quais são esses medos, a partir de histórias reais transformadas em contos de bizarrice extraordinária. A artista, natural dos arborizados subúrbios da Filadélfia, conta que começou a explorar o campo artístico através da fotografia.

“Eu tinha uma quantidade enorme de histórias para contar. Quando você é jovem, você não sabe bem que histórias são essas, mas sente que está de certa forma danificada, ou machucada, ou que é diferente de outras pessoas por causa delas. Eu tinha trauma que não conseguia explicar através da fotografia.” Até que se encontrou com o fotógrafo William Larson, que sugeriu que ela explorasse o vídeo, então ela “soube que estava em casa, podia finalmente contar uma história”.

Cecelia inicia sua carreira com o audiovisual com o curta-metragem Beneath the Skin, que conta a história do que foi um dos maiores traumas da vida da artista: seu namorado da época, Ira Einhorn, ficou conhecido como “Unicorn Killer”, pois havia matado e mumificado outra garota com quem saía no mesmo momento. Condit vivia com ele no mesmo cômodo em que o corpo estava sendo guardado.

Beneath the Skin era uma história que eu precisava contar, ela me assombrava em todo lugar que eu ia, como se eu estivesse separada do resto do mundo por ter assassinato tão perto de mim.”

Possibly in Michigan, sua história mais famosa — que acabou se tornando um sucesso como áudio dentro do TikTok, principalmente no Halloween — é uma continuação desse conto de horror. Uma outra forma de processar o sofrimento, o curta metragem considerado “um dos vídeos mais bizarros da internet” teve como base a história de uma jovem que ela conheceu no início dos anos 80, que descobriu estar namorando um canibal.

Ao ouvir a história, Cecelia percebeu que o mundo seguia essa lógica: “Homens são predadores em série. Ela não foi a única, eu não fui a única: é sistemático. Não foi apenas um canibal ou assassino, foram inúmeras mulheres. Esse é o meu mundo, eles nos matam e se você for sortuda apenas morre de medo.”

Transformar histórias e sentimentos em arte foi, para ela, uma forma de facilitar o processo de luto e sofrimento. Ao fazer pequenas músicas quase que infantis e vídeos fantasiosos, coloridos, com falas e personagens saídos de contos de fadas, a artista consegue colocar acontecimentos horrendos para trás de si mesma.

“Isso facilita. Ao fazer Jill [atriz nos dois filmes] uma personagem inocente, que pula por aí e diz “No, no, no, no, silly” comicamente, eu consigo ver humor em tudo isso e tentar aproveitar as situações de alguma forma”

Para além disso, suas obras se tornaram uma forma de materializar sentimentos e pensamentos: no musical de 2020, I’ve Been Afraid, ela diz “Eu tive medo de você, você e você, mas não tenho mais medo”. Ao dizer isso em vídeo, Cecelia conta que, de repente, o sentimento se tornou concreto. Certa intencionalidade que a artista deposita em sua obra faz com que as coisas se tornem como pedra, então ao dizer “não tenho mais medo”, isso se torna realidade.

Essa realidade, no entanto, sempre foi e ainda é marcada por histórias de horror no que diz respeito à “ser mulher”. Cecelia lembra que, no curta All About a Girl, uma garotinha encontra um rato morto e diz “Tenho medo de ser eu, talvez nós dois possamos ser eu”. Para ela, a frase resume a ideia de que “ser selvagem e morto é mais libertador do que ser viva e mulher”.

Todos os filmes da artista falam sobre o medo de viver como mulher na sociedade. De Beneath the Skin e Possibly in Michigan a We Were Hardly More Than Children e I’ve Been Afraid, Cecelia conta, através de experiências próprias, sonhos e medos, como é ser mulher em uma sociedade em que homens sistematicamente matam mulheres. Seja como lunáticos e canibais, ou ao negar tratamento médico ou empregos, para a artista, os homens ainda hoje escolhem os nossos destinos: “Nós ainda não comandamos a História, nós apenas jogamos o jogo da melhor forma possível. É por isso que a sororidade é tão importante. É tudo para mim”

A amizade é, para Cecelia, imprescindível. Janice salva Sharon em Possibly in Michigan assim como Cecelia salva Diane no auto-biográfico We Were Hardly More Than Children. No mundo da artista, a amizade entre amigas é o antídoto à violência.

“Não estou fazendo filmes para homens, […] sempre soube que estava fazendo isso para as mulheres, ou eu não teria uma voz. Elas sempre foram as únicas em que eu podia confiar o bastante para falar honestamente sobre os meus medos. Eu sempre tive minhas amigas e o meu trabalho. Eu não teria sobrevivido sem elas”

Em um mundo em que ser mulher é temer a violência diariamente, cineastas como Cecelia Condit são essenciais. Canalizar dores em arte também é dar voz àqueles que passam pelo mesmo em silêncio. A obra da artista vai muito além de músicas infantis e imagens assustadoras: são contos de violência e amizade transformados em sussurros de resistência e força daquelas que já sofreram o bastante para assustar o maior fã do terror.

*Sobre a autora: Carolina Azevedo é estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e editora-chefe da Revista Vertovina. Tem como principal interesse o cinema, sobretudo quando a arte se transforma em meio de mudança social, grito dos silenciados e resistência.