Quem nunca se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?

Como a puberdade feminina é retratada no cinema de terror, porque esses filmes despertam tanto interesse nas meninas adolescentes e como é “tornar-se um monstro”.

Por Gabriela Borges*

O terror talvez seja o gênero de cinema mais subversivo de todos. Isso porque seus filmes permitem aos personagens a liberdade de agir além do que é socialmente aceito, explorando seus lados mais obscuros. Eles podem ser exagerados, escancarados, grotescos, feios, nojentos e sangrentos à vontade para provarem seus questionamentos — questionamentos esses que, como em qualquer filme, são reflexo de alguma problemática da vida real.

Nesse sentido, em paralelo ao terror, há o “coming of age”, o gênero que retrata a adolescência: a fase da rebeldia, da diferenciação de si mesmo em relação aos pais, do questionamento aos valores, da descoberta da própria sexualidade, das rivalidades na escola, da busca por liberdade — enfim, a fase da subversão.

É por isso que o terror e o coming of age dialogam tão bem entre si, ainda mais se tratando do amadurecimento feminino, pois, nesse caso, há ainda a contradição às expectativas que a sociedade patriarcal tem com as meninas. A combinação desses gêneros subversivos causa uma catarse completa em quem os assiste, a purgação, o colocar para fora dos sentimentos de terror vivenciados na contemplação de um filme que expõe suas dores adolescentes como um balde de sangue jorrando na sua cabeça enquanto você recebe o prêmio de rainha do baile de formatura. É esse sentimento que filmes como Carrie (1976), Ginger Snaps (2000) e Jennifer’s Body (2009) buscaram explorar, de modo que meninas possam ver seus sofrimentos mais íntimos e profundos representados.

Carrie (1976)

Os filmes retratam, de início, o estranhamento e o medo das mudanças corporais que estão acontecendo com elas mesmas. Não querer acreditar que está se tornando um “monstro” ou algo anormal. O julgamento das outras meninas, a inveja, a vergonha da menstruação, o desejo sexual, a percepção do próprio corpo, a mudança de humor, o sangue, os gritos, o sofrimento, as dores.

Ginger Snaps (2000)

Porém, em paralelo a tudo isso, é mostrado um cenário diferente da vida real, um cenário onde é possível confrontar as “mean girls” da escola, ou sua mãe fanática religiosa que te prende dentro de casa e te enlouquece o dia inteiro com seus sermões e lições de moral. Mostram uma inversão de papéis em que as meninas podem literalmente comer um menino vivo, simplesmente para saciar o próprio desejo ou porque ele foi babaca com você ou com sua melhor amiga. Acima de mera saciação pessoal, esses filmes são sobre um sentimento de vingança coletiva de todas as meninas que se sentem injustiçadas por homens predadores, por seus pais conservadores e pelas garotas malvadas da escola.

Ginger Snaps (2000)

Tudo isso acaba culminando em um ponto insuportável de sede por vingança que só pode ser resolvido com a mais extrema violência. Há então, num dado momento, a realização do poder que elas, tornando-se monstros, têm nas mãos. Como quando o dote da fúria de Carrie faz com que o salão do baile pegue fogo. Ou quando Ginger está prestes a transar com um menino e sabe que ela está no controle, “quem é o cara aqui?” ela indaga de volta a ele enquanto toma controle total do seu corpo e sexo. Ou a mudança de atitude de Jennifer, após ser possuída por um demônio, de ter que satisfazer seu apetite devorando meninos e depois disso desfilar confiante pelos corredores da escola — elas sabem que não são como as outras garotas, e nem querem ser, pois, por mais que elas lutem contra suas transformações, é impossível evitá-las.

Jennifer’s Body (2009)

Para Jennifer, por exemplo, sua transformação em menina-demônio a faz sentir imortal, superior, imbatível, como um deus — ou melhor, uma deusa. Em Ginger Snaps, há uma cena que resume essa busca por tirar satisfação e qual a sensação de ter o poder para tal: Ginger mata brutalmente o faxineiro da escola sob a justificativa de não gostar de como ele olhava para sua irmã Brigitte, depois ela compara a sensação de matar alguém ao ato de se masturbar, finaliza falando à Brigitte: “Eu sou uma maldita força da natureza! Eu sinto que poderia fazer qualquer coisa!”. Já para Carrie, a realização é silenciosa, mas tão explosiva e certeira quanto: ela começa atirando facas na própria mãe, com o poder de sua mente, numa representação como se estivesse a crucificando. Então a casa começa a pegar fogo e Carrie morre junto de sua mãe, numa das cenas mais catárticas do cinema — “Carrie White burns in hell”.

Jennifer’s Body (2009)
Ginger Snaps (2000)

Essas garotas, possuídas por demônios, lobisomens ou poderes sobrenaturais, conseguiram a força física e mental necessárias para poderem conquistar a própria liberdade — mesmo que tenham morrido no final dos filmes, elas morreram tentando se libertar da submissão sob a qual estavam fadadas a viver. Então, se chega à realização final: esses filmes representam a aceitação e a confiança de se subverter, de tornar-se algo a mais, de tornar-se um monstro, de tornar-se mulher.

*Gabriela Borges: estudante do terceiro ano do ensino médio, nascida e morando em Brasília. Interessada por cinema e por pensar e escrever sobre. Buscando relações em temas recorrentes na experiência humana e em como eles são demonstrados no cinema.

Referências:

https://jezebel.com/the-horror-of-coming-of-age-subverting-the-teen-girl-e-1445614488

https://raindance.org/rebel-girls-female-coming-age-horror/

https://www.amazon.com.br/Recreational-Terror-Pleasures-Horror-Viewing/dp/0791434427

https://horrorobsessive.com/2019/11/19/coming-of-age-horror/