Como o mais importante cineasta independente americano influenciou e coexistiu com seus contemporâneos dos anos sessenta
Felipe Palmieri
O início da carreira de John Cassavetes precede a explosão da Nova Hollywood. Esta, cujo início se dá frequentemente atrelado ao lançamento do filme “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Bala”, dirigido por Arthur Penn e distribuído em 1967, é quase uma década mais nova que o primeiro longa-metragem do aclamado ator e diretor. No entanto, ressalta-se a maneira como Cassavetes pavimentou o caminho de muitos cineastas porvir e influenciou uma geração inteira tanto em termos estéticos quanto práticos. Mesmo o autor nunca tendo sido considerado como participante direto no “movimento”, em partes por precedê-lo e em outras por disparidades de procedimento e estética, a carreira de Cassavetes dividiu o contexto histórico com os cineastas da Nova Hollywood durante mais de vinte anos.
Há dois casos em específico que valem ser ressaltados, no que tange o diálogo direto entre Cassavetes e estes cineastas. Primeiramente, Martin Scorsese. Um dos cineastas de maior sucesso entre os afluentes do cinema americano sessentista, Scorsese cita Cassavetes com frequência. Mas mais que citações e admiração externa, é no universo interno dos filmes em que a relação entre ambos se faz evidente. Tomemos como exemplo dois filmes: “Shadows” de Cassavetes e “Quem Bate à Minha Porta?” de Scorsese. O primeiro é de 1958, longa de estreia do diretor, tido como filme fundador do cinema independente americano. O segundo, também longa de estreia do diretor, lançado quase dez anos após o impacto inicial de Shadows, é um dos primeiros passos da geração que revolucionou a indústria americana. Apesar do filme de Scorsese não ter atingido o mesmo nível de relevância, a distribuição do filme foi suficiente para que ele atingisse os olhos do próprio Cassavetes. Este que, inclusive, se tornou um ardente defensor do debutante Scorsese.
Evidencia-se isso na declaração dada por John Cassavetes após a exibição do filme no festival de Nova Iorque, em 1968: “Esse filme é tão bom quanto Cidadão Kane. Aliás, é melhor, tem mais coração”. Tal apreço entre cineastas é impossível de ser determinado apenas através de fatos, por derivar majoritariamente de um sentimento subjetivo, mas algumas similaridades entre os trabalhos desses artistas delimitam um caminho. Primeiramente, temos a relação profunda de ambos com a cidade de Nova Iorque, a qual é de suma importância para as especificidades dessas narrativas.
Uma exemplificação concreta de tal atributo é a proeminência de cenas nas ruas da cidade, inclusive sendo os espaços em que os dois filmes tomam partida. Na sequência inicial de “Shadows”, após uma breve abertura ao som de jazz, somos introduzidos à Ben andando na rua, prestes a ser abordado por um grupo de homens – bem do “tipo” italiano que protagonizariam a majoritária parte da filmografia de Scorsese – por conta de uma dívida. É uma cena de curta duração, mas que através de uma montagem confusa e veloz, estabelece muito do que o filme se propõe a fazer. Inclusive vale ressaltar o desbravamento estético exercido por Cassavetes, que precedeu em “Shadows” muitas técnicas que viriam a ser atreladas aos cineastas da nouvelle vague.
Já a abertura de “Quem Bate à Minha Porta?”, um filme realizado após as infinitas transformações do cinema no início da década de 60, toma um caminho diferente. A crueza de Cassavetes sai de cena em prol do artifício, e Scorsese nos apresenta à sua carreira de longas com uma espécie de montagem paralela de duas brigas de rua diferentes, ao som do rock and roll com Jenny Take a Ride de Mitch Ryder & The Detroit Wheels (em contraste com o jazz constante que habita o filme de ‘58). A rua filmada pelo diretor é muito mais vazia, como se apenas a própria ação em tela existisse, quase como uma rua cenográfica. Tal abordagem opõe a de Cassavetes, que imbuí Shadows com a constante sensação de que estamos invadindo a cidade de Nova Iorque com a câmera e os personagens.
No âmbito da história contada por estes filmes de estreia há também similaridade, na maneira como uma relação amorosa é a força motriz das personagens e até mesmo no desenrolar dessas relações. Inclusive a última é provavelmente a semelhança mais interessante, pelo paradoxo de ser ao mesmo tempo direta e sutil. Isto é, o fato de que dois personagens masculinos têm suas relações colocadas em cheque por descobrirem algo sobre as mulheres com quem tem um vínculo afetivo. No caso de Cassavetes, a revelação não ocorre necessariamente para o protagonista – vide a importância horizontalizada estabelecida por Cassavetes entre seus personagens -, mas sim para o jovem Tony, que descobre que sua namorada Leila é de uma família negra. Esse momento dramático ressalta a temática racial presente no filme e demonstra o preconceito inerente ao personagem interpretado por Tony Ray, mas o ritmo e a fluidez de “Shadows” persistem pela narrativa mesmo com o peso temático adicionado.
No filme de Scorsese, a revelação é outra. O personagem de Harvey Keitel, aqui o protagonista de fato, despreza sua namorada após descobrir que ela havia sido abusada sexualmente por um antigo namorado. Os caminhos pelos quais a narrativa transita a partir de então são muito mais dúbios e moralmente cinzentos, tratando-se de um personagem amaldiçoado pelo sentimento de culpa mas agressivo e conservador. A relevância social do assunto se faz presente no peso constante inculcado nas cenas subsequentes, que atormentam tanto o protagonista quanto o espectador. É a mesma estrutura base de ter os rumos de um relacionamento mudados pela surpresa do homem quanto a um fato da vida de sua namorada, mas abordada por uma lente muito mais austera e controlada.
Entre as afinidades e as alteridades, torna-se inegável a influência direta na relação entre os filmes. Scorsese, já mais tarde em sua carreira, disse (sobre Cassavetes) em entrevista que: “Se ele podia fazer isso, nós também podíamos”. O segredo da improvisação e independência que “Shadows” carregava é justamente ter concretizado o fazer cinema para toda uma geração seguinte. É o ponto chave para o surgimento de autores americanos fora do sistema de estúdios, cujo impacto passa a ser sentido a partir da metade final da década de 1960.
Tal período, porém, é também importante para o desenvolvimento de Cassavetes como cineasta. Apesar do impacto inicial como diretor, ele ainda não havia se firmado esteticamente ou comercialmente, tendo seguido seu primeiro longa com as produções de estúdio “A Canção da Esperança” (1960) e “Minha Esperança É Você” (1963), os quais chamaram menos atenção e acarretaram em uma quebra definitiva de Cassavetes com o sistema hollywoodiano. Ele apenas volta a dirigir já concomitante ao surgimento da Nova Hollywood, em 1968, novamente fazendo um estrondo.
Em “Faces”, a crueza estética e o realismo são elevados ao máximo, no que configura o retorno do diretor ao mundo das produções independentes. Aqui, sente-se o amadurecimento do discurso cinematográfico, no que vem a ser o passo mais relevante em direção ao que se cimentaria como o cinema de Cassavetes. O filme é composto majoritariamente por cenas de diálogo, nas quais seguimos a dissolução de um casamento e os vários acontecimentos derivados disso.
“Diferentemente da maior parte dos cineastas americanos, Cassavetes não esconde sua arte, frequentemente lembrando a audiência de que estão assistindo a um filme. Seu objetivo, no entanto, não é de apontar para a falsidade das representações cinematográficas, como o de Robert Altman ou Brian De Palma ao exporem o artifício de seus filmes. Muito pelo contrário, para Cassavetes, a arte é uma extensão da vida real. Isso não significa apenas que as narrativas e personagens de seus filmes são plausíveis ou cópias da realidade, mas sim que um filme de Cassavetes parece não diferir do natural, de um evento da vida real e que um é incapaz de compreender um filme de Cassavetes como um filme com eventos ficcionais sendo representados. Por isso seus filmes parecem ao mesmo tempo altamente realistas e altamente artificiais.” (BERLINER, 2002, p.8).
Apropriando-se do termo cunhado pelo jornalista Natan Novelli, Cassavetes é responsável por uma outra Nova Hollywood – da qual apenas ele era pertencente. Calcados em dramas humanos e de pequena escala, os filmes do cineasta são intensos ao ponto que o que está em tela importa mais que qualquer outra coisa. A intimidade é um aspecto essencial da estética construída pelo diretor, e é a característica mais ressaltada pelo diretor da Nova Hollywood que mais foi próximo de Cassavetes: Peter Bogdanovich.
Bogdanovich afirma que a Nova Hollywood foi fundada por “Shadows” e “Faces”, delimitando a raridade da emoção retratada em ambos os filmes. Porém, além dos filmes, a experiência dele com Cassavetes traz à tona uma relação quase paternal do diretor e ator com a geração que seguia seus passos. Após terem se tornado mais próximos durante a década de 70, Bogdanovich e Cassavetes estabelecem uma relação de amizade que exemplifica a essência do “mentor”.
Em 1980 a namorada de Peter Bogdanovich, Dorothy Stratten, foi assassinada pelo ex-marido. Tal episódio traumatizou o cineasta profundamente, fazendo com que ele parasse de trabalhar por alguns anos e entrasse em uma reclusão quase absoluta. Cassavetes foi, de acordo com o próprio Bogdanovich, uma das únicas pessoas a consolá-lo após a morte de Stratten. Mas além do mero consolo, percebendo a situação do amigo – que havia chegado a declarar que nunca mais faria um filme -, Cassavetes convidou Bogdanovich em 1982 para dirigir uma cena do filme “Amantes”. Ele aceitou o convite após muita insistência, e viajou para a locação – que era a própria casa de Cassavetes – para filmar alguns planos. Era uma filmagem simples, que serviu o propósito maior de tirar Bogdanovich do hiato e da depressão, mesmo que por apenas um dia de trabalho. Ao perceber mais tarde que havia sido chamado justamente por esse motivo, Bogdanovich ligou para agradecer Cassavetes, e recebeu a seguinte resposta: “Do que você está falando? Tentei colocar seu nome nos créditos como co-diretor, mas a Associação dos Diretores não permitiu”.
Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.
Referências Bibliográficas:
ALPENDRE, Sérgio. O Nascimento da Nova Hollywood. In: Easy Riders – O cinema da Nova Hollywood. Centro Cultural Banco do Brasil, 2015.
BERLINER, Todd. Hollywood Movie Dialogue and the“Real Realism” of John Cassavetes. Film Quarterly, 2002.
CHARITY, Tom. John Cassavetes: Lifeworks. Omnibus Press. 2001.
GALLAGHER, John. Peter Bogdanovich Reminisces on His Friend John Cassavetes. Movie Maker, 2016. Disponível em: https://www.moviemaker.com/peter-bogdanovich-on-john-cassavetes/.
NOVELLI, Natan. John Cassavetes e a (Outra) Nova Hollywood. Jornalismo Júnior ECA-USP, 2017. Disponível em: http://jornalismojunior.com.br/john-cassavetes-e-a-outra-nova-hollywood/.
VASQUEZ, Zach. The Enduring Noir Legacy of John Cassavetes. Crime Reads, 2020. Disponível em: https://crimereads.com/the-enduring-noir-legacy-of-john-cassavetes/.