Roberta Pedrosa
Em uma entrevista de 2020, Paul Vecchiali brinca que ele não estaria apenas na margem da história do cinema francês contemporâneo, mas mesmo fora dos cadernos. Entre a lembrança de Jacques Demy por Greta Gerwig como inspiração para a megaprodução Barbie (2023), a eleição de Jeanne Dielman em 2022 como o melhor filme de todos os tempos pela revista inglesa Sight and Sound e as inúmeras homenagens a Jean-Luc Godard após a sua morte, a figura de Vecchiali parece ainda restrita aos bastidores, mesmo que tenha participado da cena francesa como poucos: amigo próximo de Demy, produtor de Jeanne Dielman e redator da Cahiers du Cinema escrevendo sobre os primeiros filmes de Godard.
Em 2017, o público brasileiro, mais especificamente o paulistano, teve a oportunidade de conhecer mais a fundo o seu cinema na 41ª Mostra em São Paulo, que organizou uma extensa retrospectiva incluindo não apenas os filmes dos anos 1970 e 80, proporcionalmente mais conhecidos, mas também os mais recentes, e contando com a presença do próprio Vecchiali então aos 87 anos. O capítulo final dessa retrospectiva pode ser lido também como a projeção do último filme do diretor na edição mais recente do festival, em outubro de 2023.
A morte certamente é um tema que ronda Vecchiali ainda muito antes dele próprio chegar à velhice, poderia se dizer que é um dos cernes de seu cinema, o que frequentemente organiza o tom melodramático de seus filmes. De maneira particular, Bom dia à Linguagem (Bonjour la Langue, 2023) é também uma homenagem à morte de Jean-Luc Godard, referenciado inúmeras vezes – do título do filme (especialmente na tradução brasileira) au fin. No entanto, definir o filme como uma homenagem parece pouco e impreciso, se por um lado a ficção parece se nutrir da morte e do sentimento de solidão com a perda de muitos amigos e companheiros de geração, por outro, ela é uma persistência em explorar a vida, o momento presente e as possibilidades de encontro.
O filme foi gravado em um jogo de improviso entre o ator Pascal Cervo, que interpreta um filho que saiu de casa e nunca mais voltou, e o próprio Vecchiali, seu pai idoso. Esse reencontro, que pode ser o último, é permeado por um luto em comum da mãe e da irmã, que morreram em um trágico acidente de carro alguns anos antes.
A despeito do empréstimo de flashes de O Ignorante (Le Cancre, 2016), outro filme de Vecchiali no qual ele contracena com Cervo, Bom dia à Linguagem é estruturado por três cenas: a chegada do filho, um almoço em um restaurante e uma conversa em uma espreguiçadeira no jardim. A primeira é a mais dura, na qual o contexto para a relação dos dois é dada e as palavras mais violentas são ditas. Nesse início os dois atores são filmados separadamente, nunca no mesmo espaço: enquanto em um plano o filho anda em círculos, no contra-plano o pai permanece estático em sua cadeira.
As limitações de Vecchiali são nítidas e comoventes, uma cena com muito movimento de sua parte parece ser proibitiva. Quando justapostas as imagens de 2016 ao lado das de 2023, nota-se o peso que seis ou sete anos podem ter em um corpo. A montagem entre passado e presente funciona principalmente pois os filmes parecem ter sido filmados na mesma locação. Uma coincidência que se estende para Un Soupçon d’amor, seu filme de 2020, na qual os cenários são muito parecidos e que também traz uma cena emblemática entre pais e filhos na espreguiçadeira verde do jardim.
Vecchiali transforma as limitações da produção em suas maiores qualidades nesta fase final de sua carreira. A simplicidade dos enquadramentos, os movimentos de câmera bastante restritos, os cenários que parecem se repetir, assim como o enredo que parece se apresentar em círculos, acabam por enfatizar a força da atuação e da ficção melodramática proposta pelos diálogos.
Roberta Pedrosa é artista e pesquisadora. Mestre em “História, Crítica e Teoria de Arte” pela ECA-USP. Contribuiu para diversas publicações, revistas, catálogos escrevendo sobre arte e cinema.