A Flor do Buriti (Crowrã) e o encantamento da ficção | 47ª Mostra

Foto: Divulgação/47 Mostra de São Paulo/ Karõ Filmes

Vencedor do Prêmio de 2023 Melhor Equipe na Mostra Un Certain Regard, de Cannes, A Flor do Buriti fala de um mundo que ainda existe, em meio a tantos espíritos 

Mauricio Abbade

Ao filmar, o pequeno gesto se faz grandioso. Estrelas formam constelações, folhas compõem árvores e um único tamanduá faz uma fauna toda. Em A Flor do Buriti (2023), novo longa-metragem de Renée Nader Messora e João Salaviza, o individual se coletiviza.

Dançando entre ficção e realidade, o filme aborda a tensão entre os povos da floresta e os “cupe”, os não-indígenas que com frequência invadem suas terras para desmatar e alimentar o tráfico de animais silvestres. Enquanto tentam seguir com seus ritos e tradições, representantes da aldeia planejam uma viagem a Brasília, onde se encontrarão com outras lideranças indígenas, como Sônia Guajajara, em uma manifestação. 

Por mais que haja um caráter etnográfico e documental ao filme, é simplista defini-lo com esses termos. O que A Flor do Buriti faz tem outro nome: ficção – mesmo que atravessada e diluída pelo real. Isso porque há reencenação, encenação e também ficcionalização do filme. 

Os diretores trabalham, por exemplo, com duas reencenações de momentos passados do povo Krahô. A de 1940, no prenúncio de um brutal massacre dos fazendeiros da região quando duas crianças do povo indígena Krahô encontram na escuridão da floresta um boi por perto. E a de 1969, quando filhos dos sobreviventes são coagidos a integrar uma unidade militar, durante a Ditadura brasileira.  

Além das reencenações, há o desejo pela ficção por parte dos realizadores indígenas. Isso esta na construção estética do filme e também na fala de Francisco Hyjno Krahô, um dos protagonistas do longa – que, antes da exibição do dia 27 de outubro, durante a 47º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, termina sua fala dizendo que “fazer cinema é algo que me encanta”. 

É um filme composto pelo mundo real e também pelo mundo dos sonhos. Duas dimensões que dançam juntas ao invés de se oporem. Em meio a inserções de matérias jornalísticas do passado recente brasileiro e a cosmologia que se faz presente na imagem, o fantástico do real e a beleza de se acreditar se fazem presente.

Nesse sentido, A Flor do Buriti parece trazer ecos do realismo fantasmagórico para a produção nacional contemporânea: um filme ancorado no real, de estética realista e interessado em seu tempo presente, ao mesmo tempo que admite dialeticamente uma presença ativa de espíritos.  Aqui, personagens-espíritos convivem com personagens vivos e configuram uma rede sofisticada de temporalidades. 

Com planos longos e textura em 16mm, A Flor do Buriti fala de um mundo que ainda existe. Com uma pergunta sempre em mente: como a câmera, um aparelho criado e perpetuado na modernidade, consegue tornar claro, de forma respeitosa, aquilo que a própria modernidade exclui?

Ao final, o parto real de uma criança. Um bebê que nasce envolto de cantoria e também de uma câmera. “Continuamos a nascer”, diz uma das personagens. 

Mauricio Abbade é diretor, produtor e montador. Ele dirigiu o filme “Atravessaria a cidade toda de bicicleta só pra te ver dançar” (2023) e também já escreveu para o Nexo Jornal.