A Besta usa a metalinguagem para falar da criação perante o medo e o incompreensível | 47ª Mostra

A Besta (Foto: Divulgação/47 Mostra de São Paulo)

Davi Krasilchik 

O incompreensível parece ser uma eterna fonte de material artístico. Ao flertar com o incapaz de se processar, a projeção em imagens é naturalmente ativada, eficiente em elaborar formas de compreensão dessas incógnitas. É desse mecanismo que muitas narrativas florescem, propondo intersecções entre o inconsciente e a racionalidade. Talvez essa comunhão seja uma das origens de A Besta, potencializado pela fluidez das tecnologias digitais, embora nem sempre alcance totalmente a sua capacidade.

Propondo uma miscelânea de narrativas e linhas temporais, o projeto traz as personagens de Léa Seydoux e de George MacKay – com direito a nomes rotativos a cada novo segmento – como fio condutor, mostrando interações entre os dois em diferentes realidades. Entre o passado, o presente e o futuro, suas pulsões persistem em se encontrar, desafiando a frieza de universos projetados artificialmente.

Por mais que o filme emule códigos dos últimos exemplares da cinematografia de sci-fi – lembrando até Black Mirror, série antológica da Netflix sobre os efeitos da tecnologia –, é interessante como a indefinição de Bertrand Bonello rege a experiência. É como se a ode ao fabular, ao mero ato de se refletir sobre a criação dessas alegorias, fosse a máxima buscada pela direção.

Nesse sentido, chama a atenção como a trama flerta com a própria limitação, partindo do pressuposto de finitude das representações estabelecidas. Da passagem histórica onde o casal exerce funções artísticas ao futuro distópico onde humanos dividem a vida com robôs, tudo aponta para um reconhecimento da performance enquanto anulação da verdade.

Tem-se aí, inclusive, o título da obra: a tal “besta” seria a antecipação incontrolável de uma tragédia que estaria por vir, conforme entrega o desespero magistralmente reprimido por Léa Seydoux. Seus olhos procuram uma ruptura por detrás da concretude do escopo de orçamentos inflados, buscando a brecha paranóica que traria o fim dos tempos.

É como se ela rompesse, independente da esfera dramática em que se encontra, com o equilíbrio do conjunto exposto por Bonello, desestruturando a natureza do próprio longa. Nesse processo também percebemos a volatilidade das duas personalidades ali construídas, questionadas em suas variadas versões – os “eus” de diferentes multiversos se fizermos a leitura de uma tendência atual.

Ainda que a aproximação com premissas recentes estejam presentes, esse se torna mais um argumento de um conto que questiona a essência de seus códigos – e que leva, ao final, aos polêmicos créditos apresentados por um QR Code –, advogando por sua própria demolição. Afinal, o que ainda persiste por trás da representação imagética, lida por sequências de zeros e uns e projetada por ondas de transmissão luminosa?

Nessa dissolução surge, mais uma vez, o monstro figurado, impassivo e transformativo, tão inquieto quanto inexistente. Múltiplo e original, A Besta faz de partidas comuns o combustível de sua própria transformação. Embora se renda, em alguma instância, a explicar as suas próprias lacunas, a separação entre as narrativas transforma o longa em um exercício sobre o próprio contar. Mais do que a fundamentação daquelas personagens em si, ele  prioriza o intercâmbio entre o inconsciente e a criação, fazendo da impossibilidade de se traduzir o todo e de se exorcizar as causas do desequilíbrio a sua grande força de reflexão.

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